Do avesso
Redação DM
Publicado em 25 de agosto de 2018 às 03:41 | Atualizado há 7 anos
Há dias em que eu tenho certeza: conheço-me. Daí eu durmo e, quando acordo, estou do avesso. Cada vez em uma parte diferente de mim mesmo.
É nesses dias em que eu não sou eu, sem deixar de ser eu mesmo, que me pego ouvindo aquela música que está na playlist há tempos, mas que eu sempre recusava ouvir – terá sido indicação de alguém? – e descubro que é realmente boa. Também nesses dias, surpreendo-me emocionado com aquele belo poema que enaltece a pátria, mas que foi escrito no exílio do autor.
Outro dia, estando em um desses dias, resolvi assistir a um filme num desses cinemas de rua. Assim mesmo, sem qualquer planejamento, sem pretensão de ver aquele diretor premiado ou o ator do momento. Foi libertador!
Eu que geralmente vivo sob a custódia desse deus de pulso, ignorei o relógio por algum tempo e foi como se recebesse uma carta de alforria pós-moderna. Poucas coisas são tão prazerosas quanto sentir o vento noturno lhe passeando pelo rosto quando você sai da sala do cinema depois de um bom filme direto na rua e, se possível, sem o relógio lhe atando o braço e arrastando-lhe para a pressa da vida.
Quando cheguei em casa, resolvi burlar a dieta nossa de cada dia – a gente arruma tanta cadeia pra si mesmo – e fiz espaguete com almôndegas. Comi feito um vagabundo sem dama! No dia seguinte eu voltaria à minha guerra rotineira contra a balança, é claro, pois preciso perder uma tonelada e meia para atingir o peso ideal, como meu personal thriller, leia-se personal trainer, gentilmente me disse na última sessão-tortura.
Mas eu descobri que em dias assim, em que eu não sou eu sem deixar de ser propriamente eu mesmo, costumo ser uma pessoa melhor. É compreensível que possa como sendo um discurso discrepante, que distorce a realidade… Eu, por outro lado, costumo chamar de espontaneidade! É claro que este é um termo quase em desuso pela maioria das pessoas, um conceito pouco convencional atualmente, porque, infelizmente, nos consideramos tão modernos que estamos nos tornando robóticos.
A boa notícia é que, se procurarmos bem, será quase impossível que exista alguém que se conheça tão bem, do lado direito ou do lado avesso, a ponto de não haver mais nada de inédito dentro de si para ser descoberto. E se houver, deve ser uma vida mediocremente chata. A gente é mais gente quando se permite.
(Raí Almeida, estudante)