Duas lembranças do professor Geraldo Faria Campos
Diário da Manhã
Publicado em 26 de março de 2018 às 23:20 | Atualizado há 7 anos
Nesta octogenária quadra da vida, os acontecimentos de que cautelosamente nos dão notícia por envolverem pessoas queridas, soem trazer-nos recordações de natureza vária, além da indefectível reação de tristeza. Algumas lembranças são agradáveis e até cômicas, outras, merecedoras de esquecimento.
Tais sentimentos estiveram comigo presentes nas recentes cerimônias fúnebres do Prof. Geraldo Faria Campos quando, naquele clima de silêncio e prece, surpreendi-me a memorizar fatos de nossa convivência nos tempos de Correios, Faculdade e Magistério, dentre outros, o concurso para o cargo de postalista, os vestibulares, as atividades acadêmicas, os encontros religiosos e os torneios esportivos.
Mas duas lembranças distraíram-me a atenção enquanto velava o amigo. Recordo primeiro aquela que merece ser olvidada: o episódio da assinatura do “Manifesto dos Professores contra o Golpe Militar de 1964”. Geraldo e eu deveríamos assiná-lo na sede dos Correios, na Praça Cívica, nosso local de trabalho. Em virtude de minha ausência somente ele o assinou, do que lhe resultaram algumas dores de cabeça perante os órgãos militares repressores, felizmente sem consequências de grande monta. Em nossos encontros sempre lamentei essa ocorrência porquanto, circunstancial e involuntariamente, não me foi dado solidarizar-me com o colega na justa manifestação de protesto contra a Ditadura Militar.
Logo a seguir, acudiu-me a outra lembrança, aquela agradável e cômica, parecendo-me ouvir a voz do Geraldo “Alemão”, naquele tom divertido e brincalhão, a repetir uma expressão que se tornara senha de saudação entre nós: “O meu é o meu!”
Trata-se de acontecimento real e anedótico do conhecimento de quem na época trabalhava no novo prédio da Cúria Metropolitana, construído por Dom Fernando Gomes dos Santos ao lado da Catedral de Goiânia. As personagens eram uma religiosa e um cidadão que prestava serviços na residência episcopal, na Catedral e na própria Cúria.
A religiosa era a Irmã Stela, diligente colaboradora da Arquidiocese nas celebrações e atividades administrativas, inteligente e comunicativa, com quem participei em 1963 do primeiro encontro dos Regionais da CNBB, na Casa Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, Rio de Janeiro, na companhia do saudoso Padre Pereira ( José Pereira de Maria), amigo dileto nosso, do Geraldo e meu.
O cidadão era o Cícero (não respondia pelo nome composto, Cícero Raimundo), pessoa humilde, sem leitura, simplório até, o qual, segundo comentários, o arcebispo acolhera na condição de conhecido ou parente vindo das terras nordestinas.
A irmã Stela impusera-se o encargo e o prazer de alfabetizar o Cícero no que, afinal, obteve êxito.
Certa tarde de fim de expediente, no curso e desempenho da prazerosa missão, a dedicada mestra “tomava a lição de casa” ditando curtas frases para o aplicado aluno escrever: – A catedral é bonita… Sua torre é alta. E, no exato momento em que eu chegava, de certo por ver-me, acrescentou: Raimundo subiu na torre.
Assustado e confuso, Cícero parou de escrever e reagiu com seu característico sotaque nordestino:
– Não sei escrever raimundo, não!
– Mas, Cícero, você já aprendeu a escrever o seu nome. Como é o seu nome todo?, indagou irmã Stela.
– Cícero Raimundo!
– Pois então?
Ao que o Cícero, no seu ingênuo modo de ser e ver, definitivamente retrucou:
– É, mas o meu é o meu!
(Raimundo Moreira do Nascimento, professor, advogado, jornalista e escritor)