Dosando as coisas: o bom senso é mais importante que a lei em um juiz do interior
Diário da Manhã
Publicado em 25 de março de 2018 às 00:14 | Atualizado há 7 anosSempre que posso, e quando meu amigo Gercílio Godinho vem a Goiânia, uma ou duas vezes por mês, ficamos horas lembrando-nos da minha curta mas proveitosa passagem por Taguatinga, onde exerci a magistratura por um ano.
Segundo consta, Taguatinga, em doze anos que antecederam minha lotação como juiz na Comarca, ficou nada menos que oito sem juiz, pois era considerada de difícil provimento, precisando um incentivo nos vencimentos para que o juiz ficasse por ali.
Quando escolhi a comarca de Taguatinga o Presidente do TJ-GO, Des. João Canedo Machado tentou dissuadir-me da ideia de ir para o interior, preterindo Comarcas mais futurosas, como Bela Vista, Nerópolis e outras nas rodeanças de Goiânia. É que a minha colocação em 3º lugar no concurso me dava o privilégio de escolher um lugar melhor para trabalhar. Mas bati pé, que Taguatinga era a escolhida.
– Mas, doutor, aqui perto é melhor, pois está mais perto do centro de decisões… – insistia João Canedo.
Não adiantou. Escolhi Taguatinga, tanto por sua proximidade de minha cidade, Dianópolis, quanto pelo fato de ter fortes ligações com o povo dali, pois os amigos e colegas de Ginásio era na maioria da antiga Santa Maria: Gercílio, Natacílio, Gaby, Tonico e outros, que me carregavam pra lá nas férias.
Mas, no fundo, o motivo preponderante era o de que ali seria Tocantins em menos de um ano, e eu já estaria aboletado no meu próprio torrão para ajudar a construir o Estado caçula.
O desembargador João Canedo me preveniu que Taguatinga era uma Comarca complicada, não pelos problemas judiciais, mas porque a política ali era terrível, com os Almeida brigando com os Carmo, de sorte que uma eleição era uma verdadeira batalha. E para inteirar as medidas, o ano de 1988 era um ano eleitoral, com eleições gerais, quando seriam escolhidos o governador, senadores, deputados federais e estaduais, prefeitos e vereadores. Era um ano histórico, pois seriam escolhidos os primeiros dirigentes do nosso Estado, desde o governador até os Prefeitos Municipais.
Ser juiz naquelas circunstâncias era uma temeridade, ainda mais que eu era amigo dos Carmo e dos Almeida, não podendo cair no deslize de tratar um melhor do que ao outro, sob pena de correr o risco de uma impugnação por suspeição. Mas me arrisquei.
Chegando a Taguatinga, como era natural, recebi visitas, aceitei convites para almoços e jantares, mas sempre com um pé adiante e outro atrás. Como não sabia quem era quem politicamente, de vez em quando alguém prevenia:
– Doutor, o senhor vai almoçar com Antônio Bonfim, candidato a Prefeito pelo MDB?
– Vou, é claro!
Só que, na hora do almoço, eu passava na casa de Tonico Almeida, que era o candidato do PDS, rival de Antônio Bonfim naquele pleito:
– Tonico, você vai almoçar comigo hoje!
Quem iria deixar de aceitar o convite do Juiz Eleitoral em ano de eleição? E na hora do almoço eu chegava com o candidato adversário a tiracolo, desarmando eventuais mexericos. O assunto morria ali.
Quando começou a campanha, e antes de haver qualquer comício, convoquei todos os candidatos locais, a prefeito e a vereador, no Colégio e cantei meu beabá:
– Vou assistir a todos os comícios de todos os partidos, e se houver algum excesso, com xingatórios e coisas semelhantes, mando prender na hora. Se quiserem ver é só experimentar e vão ver se não vão pro xadrez.
Dei meu recado e até andei passando pitos em candidatos que se atreveram a questionar minha decisão, de forma que ninguém teve o topete de experimentar contestar minha autoridade.
Era costume os candidatos majoritários, por ato de cortesia, visitarem o Juiz de Direito, e ambos os candidatos a Governador, Siqueira Campos e José Freire, estiveram lá em casa para conversar amenidades.
No dia do comício de Siqueira Campos, como soía acontecer com todos os candidatos, que visitam a casa do juiz, ele esteve lá em casa com seu vice, Darci Coelho, e os candidatos ao Senado, Carlos Patrocínio e Antônio Luiz Maya, e me convidou para assistir ao comício.
Declinei do convite para o comício, mas aceitei o do jantar. Fui e jantei, não sem antes ter sustentado bons dedos de prosa sobre o futuro do Estado caçula.
Naquela oportunidade, Siqueira me disse que ia precisar de mim para ajudar a implantar o Estado. Mas eu supunha que tinha sido um convite só de cortesia, pois nunca acreditei em promessa de político e jamais imaginaria que ele fosse me nomear desembargador, um juizinho de interior recém-nomeado, e com tanta gente de peso à disposição para formar o Tribunal.
A Constituição, na parte que criou o Tocantins, dava ao governador o direito de escolher os primeiros sete desembargadores, sendo cinco da classe dos magistrados, um advogado e um membro do Ministério Público. E na classe dos magistrados havia muitos nomes de juízes e desembargadores de peso, como Renan de Arimatéa Pereira, Júlio Resplande de Araújo e Pedro Soares Correia, que eram tocantinenses e queriam ir servir ao Tocantins.
Houve até um início de zunzunzum no dia seguinte à visita de Siqueira Campos, comentários de rua, que me deixaram em justificável desconforto, pois diziam que eu tinha “bandeado”.
Mas me redimi: dois dias depois, no dia do comício de José Freire, candidato oponente, ele também esteve lá em casa com seu vice, Brito Miranda, e me convidou para o comício.
– Ao comício eu não vou, mas ao jantar estarei lá, com prazer – redargui.
E fui, para calar os possíveis malfazejos, comportando-me tal qualmente fizera no jantar de Siqueira Campos. E assim passei incólume em Taguatinga em pleno ano eleitoral, gozando da estima de todos os partidos, sem um só incidente de suspeição.
E hoje, às vezes tiro dois ou três dias para, como hóspede da mana Luzia, que mora lá, rever os amigos e relembrar as peripécias que armei como juiz da cidade.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa – AGI – e da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas – Abracrim – escritor, jurista, historiador e advogado, liberatopo[email protected])