As “reminiscências” do Raimundo XXIII
Redação DM
Publicado em 23 de março de 2018 às 21:58 | Atualizado há 7 anosNas horas de folga, quando eu podia, fazia os trabalhos de folga. Esses, eu não abandonei. Era minha obrigação, meu dever de casa, como se diz.
Essas minhas obrigações caseiras, só as deixei quando fui embora para Anápolis, início do ano de 1959. Trabalhei nelas até a véspera da saída. Tenho certeza de que deixei os potes cheios d’água, e o fogão cheio de lenha e com bastante lenha de reserva no quintal.
Esse emprego na Prefeitura me foi de muita valia para minha vida futura. Foi o meu primeiro emprego. Aprendi, ali, a datilografia, que era de muita utilidade nos serviços burocráticos. E como me valeu, no futuro! Adiante, relatarei o porquê.
Todos, na Prefeitura, eram de bom coração. Do Prefeito, Sr. João Rego, de fino trato, ao ‘seu’ Caio, nosso vizinho, que morava na esquina próxima de nossa casa, à Dona Luzia (Dona Luizinha), Tesoureira. ‘Seu’ Caio era o Contador. Também era o ‘barbeiro’, nas horas de folga.
E foi assim que aprendi a profissão de datilógrafo: A Prefeitura tinha as máquinas de escrever, não mais me lembro da marca delas. O seu ‘Caio’ escrevia, aliás, batia à máquina, como se dizia, utilizando apenas os seus dois dedos indicadores. Mas vendo ele o meu interesse, e com o seu jeito bom e interessado no progresso da gente, no futuro da pessoa mais nova, disse-me: “Olha, Raimundo, o correto de usar a máquina de escrever não é do jeito que eu faço, mas usando os 10 dedos das mãos”.
Eu, que já iniciava do jeito errado, prontamente mudei. Posicionei meus 10 dedos nas teclas, de maneira correta, segundo ele me orientara, e era, realmente, assim. Fiquei sabendo, muito tempo depois, até quando já havia aprendido com aquele professor autodidata, carinhoso para comigo, que sua orientação estava correta. Somente quando eu havia saído de Conceição do Araguaia, é que vim a conhecer o manual de datilografia, onde pude constatar, com alegria, que ‘seu’ Caio me havia ensinado de maneira correta. E com essa ajuda valiosa e carinhosa, de uma pessoa altruísta, me foi possível dar meus primeiros passos no preparo para a vida. Porque, aprender alguma coisa, requer, por mais simples que seja, como, no meu caso, a datilografia, muito interesse, e é sempre muito útil. Quem for observador e atento, poderá constatar isto, no transcorrer da sua própria vida.
Uma vez, já contei como aprendi a escrever à máquina, usando o método correto, falarei de minhas atribuições nas funções específicas de Protocolista.
Como o nome já é autoexplicativo, a função precípua era, pois, a de protocolizar, na Prefeitura, os requerimentos de toda ordem que ali entravam. Eram solicitações de loteamentos urbanos, medições de áreas e numa lista interminável estavam os requerimentos para compra de terras, na zona rural.
E foi naqueles idos de 1957 e 1958, que começaram a chegar àquela região, considerado ‘O Eldorado’ das terras produtivas do País ainda não exploradas, constituídas de matas virgens e pujantes, e onde a água era e ainda é, abundante, os sulistas, assim chamados, naquela época, que eram, na sua maioria, mineiros.
Lembro-me bem da chegada daquela avalanche de ex-proprietários de terras, no ‘sul’, – Minas Gerais, dentre outros. Eles lá vendiam as suas pequenas ou médias propriedades, e ali pretendiam aumentar bem mais as suas áreas. O raciocínio era correto. As pessoas que para ali corriam, tinham visão futurista.
Via-se, pelo porte e atitude, que se tratava de gente trabalhadora, porém muito simples. Se não todos, pelo menos a maioria de que eu bem me lembro.
Eles usavam roupas riscadas, xadrezadas, panos tecidos no tear, fios multicolores. De acordo com a cor dos fios que predominasse na hora de tecer aquele pano, aquela cor dava o tom do tecido. Usavam o embornal a tiracolo. Era ali que eles carregavam os seus utensílios de uso imediato, – o fumo, a binga, o ‘papel abade’ para enrolar o fumo e fazer o cigarro, quando não traziam algumas boas espigar de milho, bem finas, com as quais eram feitos os cigarros, em vez de fazê-los no papel. As palhinhas já vinham cortadas.
Eles iam à Prefeitura, orientados por seus corretores de imóveis, fazer o requerimento da área pretendida. E alguns deles, através de seus futuros procuradores, acompanhavam o processo junto à repartição competente na capital do Estado do Pará, Belém.
Eu, o Protocolista, que já havia aprendido com o ‘seu’ Caio a datilografia, fazia os requerimentos à máquina. Eu ganhava um pequeno valor por esse serviço, que não era função da minha ‘pasta’.
Em seguida, eu protocolava aquele requerimento. Recebia do Requerente o valor determinado e, posteriormente, fazia a prestação de contas com a Tesoureira, Dona Luzinha. Às vezes, eu gastava, indevidamente, parte daquele recebimento até o recebimento de meu ordenado, para comprar minhas coisinhas de uso pessoal, ou de consumo. Mas eu não demorava a repor aquele valor, e fazia nova prestação de contas. Eu já era um tanto vaidoso.
E, dessa forma, trabalhei muito nesses requerimentos, porque, naquele ano, não paravam de chegar os ‘sulistas’. Eram centenas de requerimentos. E aquele ano só foi o início da chegada dessa gente nova para o Estado do Pará. Eles continuaram chegando nos anos posteriores , inclusive de outros Estados da Federação, – São Paulo, Goiás, etc. Papai mesmo se beneficiou, por muitos anos ainda, com a chegada desse povo, nos anos subseqüentes. Foi quando ele aprendeu a profissão de Agrimensor. E foi nessa profissão que ele se estabilizou, econômica e financeiramente. Foi nesse período que adquiriu suas terras de maior extensão. E uma delas veio a conservar até os últimos dias de sua vida laboriosa. As demais propriedades ele as vendia, depois, para fazer capital de giro.
E foi datilografando esses requerimentos que eu ia melhorando cada dia mais minha habilidade nessa atividade. Não me tornei um exímio datilógrafo, mas, com o que aprendi lá no Estado do Pará, como Protocolista da Prefeitura Municipal de Conceição do Araguaia, foi que aprendi a desempenhar outras funções burocráticas, no futuro não mundo distante.
Trabalhei muito como Protocolista até minha ida para Anápolis/GO, para morar na companhia do Licínio. Entrei na Prefeitura de Conceição do Araguaia no dia 14 de abril de 1958, e pedi exoneração no dia 30 de janeiro de 1959, em função de minha mudança para o Estado de Goiás, em busca de melhores dias, e onde, felizmente, os encontrei.
‘A Festa do Boi’ – Uma das festas de grande aceitação, em Conceição do Araguaia, era a ‘Festa do Boi’. Essas festas arrebanhavam grande multidão, que acompanhava, nas ruas, com grande alegria. Os festejos tinham quase sempre dois bois, ou dois grupos de pessoas que faziam aquela festa ao mesmo tempo. Uma pessoa, que devia ser muito forte, ficava dentro daquela armação, com apenas um pequeno visor na frente, e parte inferior do pescoço do boi. E aquele boi era colocado nas costas daquela pessoa que ficava inclinada, de forma que a armação ficava em posição de um boi em pé. A gente não via a pessoa que a conduzia. Nas laterais, havia uns panos que desciam até o chão, de forma que o condutor ficava invisível. E a pessoa corria, fazia volteios e investia em direção aos presentes. Era só alegria! E era muito colorida a pelagem daquele animal. Seus chifres eram enormes, bem escolhidos entre os mais imponentes e mais bonitos das cabeças de algum grande animal que houvesse sido abatido. E aquela festa, que era noturna, durava vários dias. Andava pela cidade. Havia, no último dia, ao final da festa, a morte do boi. Este, parece que adivinhando que ia morrer, berrava, mugia, tristemente, que a gente – a meninada inocente acreditava que ele entendia que ia ser sacrificado. A gente até ficava com pena daquela vítima. E a morte daquele animal se dava a facadas. Tinha a sangria do boi. Via-se o sangue (o vinho, na verdade), cair, a golfadas, numa vasilha. Aquele sangue era servido a algumas pessoas ali próximas que, via de regra, eram os proprietários da casa que fosse escolhida para o encerramento da festa, que correspondia à morte do boi.
Havia o ‘palhaço’, a ‘catilina’ ou ‘catirina’ que fazia suas acrobacias e amedrontava a meninada. Era sempre trajado de um longo vestido colorido e usava pernas de pau. Usava máscaras para não ser reconhecido. Era o palhaço da festa. Só que, ao invés de brincalhão, era sempre muito nervoso, e estava sempre pronto para aprontar das suas com os mais desavisados, principalmente a meninada que, também, atentava aquele mostrengo.
‘Ensaio para fazer Curso para Sargento da FAB em Guaratinguetá – SP’ – Naquele ano, em que não estudei em Conceição do Araguaia, eu e alguns amigos , entre eles Manoel Lacerda (Cavaco), Cirilo, Juarez Noleto e o José Miguel, resolvemos nos preparar para um Curso de Sargento da Aeronáutica lá de Guaratinguetá/SP. Só que, para lá ingressar, era preciso passar por um exame de seleção. Concurso, mesmo.
Procuramos saber, através da Base Aérea, ali mesmo, em Conceição do Araguaia, quais as matérias a estudar. E eu só tinha terminado o Curso Primário. Lembro-me bem de que chegamos a adquirir algumas apostilas, material preparatório. Formamos um grupo razoável de jovens, – uns mais jovens, outros mais idosos, entre eles nosso amigo Cirilo.
Não me veio à memória quem era o nosso lente, orientador. Eu sei é que alguns dos componentes do grupo, mais letrados, davam explicações aos demais das matérias que lhes eram mais familiares.
Estudamos um curto período, apenas. As aulas eram ministradas numa das salas do Colégio (internato/externo,) dirigido pelos Padres Seculares. Aquele colégio era construído numa vasta extensão de terreno. E para aquelas bandas, eram instalações de bom nível. Tinha muito espaço para recreação, o futebol, principalmente. Mas aqueles nossos estudos não prosperaram, – faltava estrutura, corpo docente, por exemplo. E dentro de alguns meses, vim para Anápolis/GO, morar com o Licínio.
‘Dona Sebastiana, a ‘cunhã’: Não posso deixar de falar, aqui,também, de uma pessoa muito simples, mas um exemplo de pessoa trabalhadora, apesar de sua idade avançada, e merece minha admiração, exatamente por se tratar de uma pessoa idosa e muito dedicada ao trabalho. Não se entregava às dificuldades da vida, apesar de sua simpleza e, acima de tudo, uma pessoa digna.
Diziam, os mais antigos que ela tinha uma boa dose de sangue indígena. Talvez da tribo ‘Carajá’ ou ‘Caiapó’, índios que habitavam aquela região. Daí chamarem-na ‘cunhã’ – mulher, em tupi-guarani, tribo que não mais existia por lá. Mas esse termo era bastante usado para as índias, mesmo naquela região.
Dona Sebastiana tinha vastos cabelos, onde sobressaíam os cabelos brancos, embora ainda tivesse alguns fios pretos. Não usava prendê-los. Era uma cabeleira solta. Era uma boa senhora, no entanto. Usava roupas compridas, tipo as das crianças. Quase sempre estampadas como chitas, e não timbravam pela limpeza. Era o tipo encardido. Pela aparência, já era de idade bem avançada, tinha os seios muito caídos, e parece que não usava nada que os apoiasse.
Apesar de toda essa aparência modesta, era muito trabalhadora. Exímia no fabrico de suas quitandas, inclusive os famosos bolos ‘mangulão’, aliás muito apreciados por muita gente – era o meu bolo preferido. Vendia, também, algumas frutas tais como banana, também a fruta de minha preferência.
Era bem verdade que, de quando em vez, a gente encontrava uns daqueles cabelos brancos, compridos, naqueles bolos saborosos. Mas o estômago da gente era resistente, nada lhe repugnava. A juventude, naquela faixa etária, fase de crescimento, é sempre faminta. Aquilo não era obstáculo para o consumo daquele bolo saboroso. Tirava-se o fio de cabelo do bolo, pois por nada deste mundo eu iria desperdiçar aquele pedaço de bolo, quanto menos por um simples fio de cabelo.
E eu gostava tanto de banana que, quando o Zezinho, irmão de ‘Madrinha’, me mandava comprar umas para ele, eu, sabedor de que ele não gostava delas ainda não muito maduras, eu só as comprava assim, pois eu sabia que ele não gostava, e me daria todas elas. E eu as comia, deliciosamente. Era uma gulodice a toda prova. Um apetite voraz.
Quando eu me propus relatar, mesmo que sucintamente, algo sobre os personagens da minha convivência prosaica, o fiz com o único propósito de demonstrar o quanto foi importante para mim, naquela quadra da minha vida, entre os 10 e os 16 anos de idade, ter convivido e vivido, em alguns casos, à mesma época, naquele grupo de pessoas, do qual fazia parte a minha família. Esses relatos não tiveram como foco defeitos de quem quer que fosse. E quem não os tem? Mas apenas procurar, mesmo que resumidamente, demonstrar o ‘modus vivendi’ dessas pessoas, que, para mim, em alguns casos, foram exemplos de vida, e que não deixaram de influenciar a minha personalidade, numa sociedade de que eu fazia parte, e de que muito me orgulho. A adolescência é constituída de eventos que constituem os anos dourados de todo ser humano: Sem preocupações, sem compromissos, – somente sonhos, e sem pensar muito no futuro, mas apenas viver, com alegria o presente. Portanto, os parentes desses personagens não me levem a mal, tê-los citado neste trabalho, pois o fiz com muito carinho, e sem a mínima intenção de afetar, negativamente, a sua estatura moral, nem a dignidade de quem quer, que, seja.
(Licínio Barbosa, advogado criminalista, professor emérito da UFG, professor titular da PUC-Goiás, membro titular do IAB-Instituto dos Advogados Brasileiros-Rio/RJ e do IHGG-Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, membro efetivo da Academia Goiana de Letras, Cadeira 35 – E-mail liciniobarbo[email protected])