Condenados à liberdade
Redação DM
Publicado em 20 de março de 2018 às 01:06 | Atualizado há 7 anos
A “Mãe-Natureza” (“biologia”) sempre nos disse que os mais fortes têm de dominar. O filósofo inglês Hebert Spencer, antes mesmo de Darwin, cunhou a partir daí o famoso termo “sobrevivência do mais forte”. Os nazistas tentaram aplicar esse princípio, alegando que a raça branca-ariana-europeia era mais inteligente e mais forte. O filósofo alemão F. Nietzsche criticava aqueles que, desde os gregos pós-sofistas ( Sócrates, Platão ), até os grandes teólogos da Igreja, tentavam anular os fortes, por puro despeito ressentido e pura vingança e deleite dos mais fracos (“doutrina do coitadismo”).
Os franceses iluministas e depois Kant disseram que a autonomia que deve ter todo ser humano deve libertá-lo dos grilhões da pura dominação do mais forte.
Estudos psiquiátricos modernos (“biologia”) mostram que esta “autonomia” não é algo puramente filosófico/político/moral, nem fruto da vingança dos fracos ressentidos, mas sim que é algo que pode ter bases no próprio funcionamento cerebral.
A liberdade, autonomia, à qual todo ser humano está “condenado”, tem origem em uma função psíquica que só os humanos têm: a memória de trabalho desenvolvida. A memória de trabalho é uma função cerebral que permite que nossa vida mental ocorra por meio de vários feixes de pensamento simultâneos, ao contrário dos animais, que só tem um feixe elementar, seriado, de vivências. Por exemplo, nós começamos a pensar algo e imediatamente a este pensamento se agregam dezenas de outros pensamentos. Estes pensamentos agregados correm em paralelo ao pensamento principal. Em muitos casos tais pensamentos paralelos substituem temporariamente aquele pensamento inicial, de modo que este último, o pensamento inicial, só vá aparecer de novo lá na frente, no raciocínio.
Não pensamos de modo linear, serial, mas sim de modo paralelo, acumulativo. Uma vivência vai-se acumulando sobre outra vivência, de modo que uma vivência vai-se interpenetrando na outra. Estas vivências-sobre-vivências geram um “segundo eu”, um eu psíquico que “manda sobre um eu biológico, um eu primário, mais primitivo”.
É assim que nós estamos o tempo todo conversando conosco mesmos, comentando o que fazemos, etc (vide os estudos de Vygotsky sobre isso). Esse “eu secundário” quer mandar no eu primário, quer dominar a biologia, quer ser dono do próprio destino, enfim, quer ser livre. Por isso, biologicamente, o ser humano não nasceu para ser mandando por ninguém. Isso, por um lado…. por outro lado, veremos no próximo artigo, como esta mesma biologia nos obriga a sermos “presos” a alguém…
(Marcelo Caixeta, médico psiquiatra ( hospitalasmi[email protected] )