As flechas de areia e a escuridão das trevas
Redação DM
Publicado em 4 de março de 2018 às 00:08 | Atualizado há 7 anos“Paisagens abertas, desertos medonhos, léguas cansativas, caminhos tristonhos que fazem o homem se desenganar”
(Beira-Mar, Zé Ramalho).
Os pilares da alma “forte” embasam suas verdades engendradas por lutas contínuas e “honestas” a erguer valores “inabaláveis”. Em ataques efêmeros de egos costurados ou flechas atiradas de arcos montados em areia, a hipocrisia e ingratidão permeiam a atitude exacerbada do orgulho aliada nada mais, nada menos que à arma sorrateira de quem se esconde em meio ao véu da falta da coragem e educação. Sem saber o que fazer, sequer, o que almejar, o mundo (in) compreensível – envolto em alta modernidade – portanto irracional (des) caminha assim. Nele, as pessoas, em sua grande maioria – transformadas pela correria e avareza – pedem ao santo de braços dados com o diabo, esquecidos de sua gênese e essência – materialidade do átomo – e veneram a falta de identidade a flamular bandeiras anêmicas de uma retidão achada em meio ao acaso da coincidência e isenção de caráter. Sobre a conduta da imaginação – para o ego ou abortada dele – a propiciar o escorregão ético-moral da retidão de caráter, Paulo advertia a Timóteo: “Não deve haver uma diluição da mensagem por causa da modernidade do auditório” (Swindoll, 2003, p. 380).
Ao refletir a moral é preciso ponderar a sua ética como sangue a correr nas veias do direito trespassado pelas áreas de conhecimento. Essas, distintas em seus vínculos e sobreposições determinam as categorias da moral como direito embasado em regras que visam estabelecer certa previsibilidade para as ações (des) humanas, firmadas nas suas diferenças. A Moral estabelece regras assumidas pela pessoa – forma de garantir o seu bem-viver – pois independe das fronteiras geográficas, garante uma identidade entre seres sociais (consumistas) incapacitados de se reconhecer uns nos outros, porém, bebem de um referencial moral comum traído, alienado ao sistema capitalista. Ao auscultar as ondas do rádio – como quem escuta o coração – que anuncia o fim do dia e também do mundo, o sujeito reifica a luta árdua pela sobrevivência material. Muitas das vezes, volta para sua casa erguida a suor, fé e adobe, vigiado pelas margens de um rio largo, tenso e concorrencial que o oprimem e expropriam no embornal vazio de peixes e de algum pedaço da alma. Nenhuma mercadoria – concreta ou abstrata – vale ou carrega o peso e tamanho atômico equivalente a uma escama do poder.
De acordo com Pereira (2011) a critica da sociedade a cobrir suas feridas socioeconômicas com o “band-aid” e éter dos mínimos sociais, passa pela agonia liberal que entende serem as desigualdades criadoras. Hayek afirma que “quando não excessivas ou intoleráveis, são úteis ao crescimento econômico” (in PEREIRA, 2011, p. 95). Este que detém a chibata de acolhimento à massa, maneja o cajado do escambo das almas e a força da iniquidade material afunilado no suor e respiro do espírito (des) empregado. Assim, combinando uma concepção naturalista das desigualdades criadoras com a do “darwinismo social”, de acordo com Pereira (2011) “os adeptos deste tema explicam que, por um lado, ‘as desigualdades poderiam permitir uma taxa de poupança maior, sendo as classes mais favorecidas aquelas que mais poupam o que incentivaria a expansão dos investimentos e, portanto, um crescimento maior’” (p. 95).
O barco comercial das iniquidades – carregado em mentiras neo-neoliberais – avida da (des) humanidade atracada na praia habitada por pedras, aponta a seta do lucro incessante que contrapõe ao saldo líquido lucrativo da covardia imposta ao pobre sem pecado nem pescado algum. Ao final da feira moderna, outrora em fartura, o arrastão da gente periférica – em cima do direito do cidadão comum – rouba-lhe nada mais que o fetiche da ilusão, decepções e intrigas: “É logo cedo, quando o medo vem lembrar que é dia de trabalho! Nó na garganta o galo canta e lá vou dançar. Atrás de quê? Salário! Eu penso na fuga e logo me afogo, outra vez, nesse meu calvário! Levanta, sacode a carcaça que a dança não pode parar! Trabalha! Dando corda nessa estúpida engrenagem vê se você trabalha mais e espreme, esgota a força que te põe de pé, trabalhe, aniquilando o que é humano, o que é coragem. O que há de errado? O que será? O que que é? Trabalha! Toda fachada esconde a mesma humilhação. Trabalha!” (El Efecto).
Como que num plágio do personagem da obra “O Velho e o Mar”, de Ernest Hemingway, prêmio Pulitzer de 1954, esvai-se o cerne humano comum nem luta contra as ondas existenciais. Segura firme a linha cortante que disseca as mãos calejadas, ergue esperanço os olhos aos céus, busca inquietamente a recompensa da vida – peixe dos seus sonhos – troféu de toda uma labuta perene por navegar as ondas de uma vida entalhada a dor na qual o trabalhador – exausto – pede por dignidade, implorando, como na música Construção “por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir, a certidão pra nascer e a concessão pra sorrir, por me deixar respirar, por me deixar existir, Deus lhe pague pela cachaça de graça que a gente tem que engolir, pela fumaça e a desgraça que a gente tem que tossir, pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair” (Chico Buarque).
A convivência torna cancerosas pessoas desconhecidas a mentir umas às outras. É o descontrole emocional, dislexia de sobra que não dão brechas às saídas, camuflam a notícia fatal numa cura imaginária por meio de drogas comercializadas no balcão (i) legal do consumo de alucinógenos. O apoio do amigo traiçoeiro carrega o mesmo peso do falso suporte à mulher ou homem que matam a jurar rimas de amor. O sonho delega à luta real pela sobrevivência uma vida na qual o ato de seguir trilhas tortuosas é tarefa demorada, vagarosa, em meio a passos calejados calçados na honestidade com liberdade. A transitoriedade nunca é eterna, o dia certo – por certo – chegará nesta “terra arrasada onde se arrasta a multidão. Vem que está na hora, não enrola, nem demora, para não ficar de fora da fila do sacrifício. O trem vai rumo ao precipício. Estamos no vagão, somos a carga amarga, tristeza de boi ruminando aquilo que era para ter sido e não foi. Reféns da mesma trama, o drama da humana manada. A vida é isso camarada? Começa como dádiva, mas logo vira dívida se sobrevive à dúvida. Algo segue te dizendo que você valia mais, valia mais valia” (El Efecto).
Conta o falso profeta que aquilo que lhe for roubado, à luz do dia, voltará em dobro. Por certo, na forma de uma casa; da cara com energias renovadas na amizade do cachorro fiel a abanar o rabo; em forma de plantas e de gente que respeite e aprecie a verdadeira personalidade, pessoas com alma. Entregar as pontas dessa trama às (des) humanidades seria golpear a sabedoria do mestre que afirma: “Eu sou um intelectual que não tem medo de ser amoroso, eu amo as gentes e amo o mundo. E é porque amo as pessoas e amo o mundo que eu brigo para que a Justiça Social se implante antes da caridade” (Paulo Freire). Cada flecha de areia atirada, ao invés de ferir, fortalece, enraíza ainda mais a amizade das pessoas que gostam da tua pessoa. Os pensamentos – pilares filosóficos – são anjos que te dizem valer a pena lutar, buscar e acreditar – ou não. O destino é longe, se acha muito distante de quem não tem nada a acrescentar. Plantar uma árvore, fazer um filho, escrever um livro, estas as obrigações de um homem digno de qualquer dignidade – segundo os otimistas de plantão. Talvez, e, no sentido inverso dos valores (vendáveis), de vez em quando, e, nessa vida, alimentam-se anjos para exorcizar os afilhados do anticristo.
A força da alma reflete-se pela energia de sua luz e carisma, com o cimento da honestidade mantida em meio à luta incansável de fé e coragem, como que a copiar a verdade das crianças que acreditam no futuro ao vender jornais impressos em falácias a serem comercializadas nos sinaleiros da urbe. Os inocentes sabem de cor o que Paulo diria: “A força vem quando abraçamos a fraqueza e nos vangloriamos dela”, no que o pregador escocês James Stewart reforça como desafio: “É sempre sobre a fraqueza humana e a humilhação, e não sobre a força e confiança humanas, que Deus escolhe construir seu reino. Ele pode usar-nos não simplesmente apesar da mediocridade, da impotência e da enfermidade que nos desqualifiquem, mas exatamente por causa delas” (Swindoll, 2003, p. 282).
Lá na frente, um dia, toda a verdade vem à tona, mesmo que “nas favelas e no Senado espalhe-se a sujeira para todo lado, e ainda que ninguém respeite a Constituição, mesmo que todos acreditem em algum futuro para a Nação a indagar que País é esse”, segundo Renato Russo e sua Legião. O ser humano deixa – sem querer – uma lágrima escapar num segundo breve, talhado a verdades que se permitem escorrer até o leito do rio da existência. Ali os sonhos alimentam a prole, o real assiste à ilusão das margens do rio em sangue fingindo estar tudo tranquilo e a correr para o azul profundo do mar. Um mar inteiro a esconder pecados denunciados na forma de numa lágrima, capaz de molhar e salgar prefácio de livros ainda sem título, epílogo, crivo, copidesque e do caminhar com a pena da imaginação. A vida é assim, ensina a jamais dar algo com uma mão esperando troco ao estender a outra. Ela pisa mais leve em certas almas inquietas que, mais dia, menos dia, encontrarão seu lugar porque “o hábito de praticar o mal não é sabedoria; o modo de agir dos pecadores não é prudência. Há uma malícia hábil que é execrável, e há uma estupidez que é apenas falta de sabedoria” (Eclesiástico, 19: 19-20).
Enquanto isso a luta continua, às vezes, há que dar uma parada, repensar, sem deixar de atuar, respirar e escrever mais uma página a caneta, a enxada, representar no discurso do gago, andar ao lado de gente disposta a dar as mãos e caminhar. Navegamos “rumo ao amanhecer quando juntando-nos aos que nos velam suavemente na morte” (Roger Hudson). Os amigos são aqueles que podem vir e desejam ir visitar. Além do amigo execrado e preso, os poderosos castelos escondem reis solitários, mudos a ouvir crianças esfarrapadas que cantam o que a vida fez delas. Ao se descobrir só, você sorri dos esquemas elevados, da deriva de amigos levados pela onda de sonhos quebrados, atordoados por pesadelos açodados na corrupção. Todo trabalhador, ébrio ao final do dia de labor, sabe que “o operário dado ao vinho não se enriquecerá, e aquele que se descuida das pequenas coisas, cairá pouco a pouco. O vinho e as mulheres fazem sucumbir até mesmos os sábios, e tornam culpados os homens sensatos” (Eclesiástico, 19: 1-2). Passada a chuva o vendaval desaparece em meio ao sol da verdade que sobrevive a gritar em meio à praça sobre quem é você, por você, e, em nome dos amigos que dizem conhecer de você, mesmo que envoltos na poeira das iniquidades.
Quando a escuridão abrir o céu em trevas, só a verdade brilhará a dizer que é a razão a menor das mentiras, sabidas e contadas à alma só por você: “Há quem se cale e é considerado sábio, e quem se torne odioso pela intemperança no falar. Há quem se cale por não saber falar, e quem se cale porque reconhece quando é tempo (de falar), o sábio permanece calado até o momento (oportuno), mas o leviano e imprudente não espera a ocasião” (Eclesiástico, 20: 5-7). Na vida regrada e dura, muitas das vezes, as noites são longas demais devido às incertezas: “Muitos acidentes ocorrem como se os céus não tivessem querido que os evitássemos. Se isto acontecia em Roma, cidade onde reinavam a grandeza d’alma, a religião e a sabedoria, não é de se espantar que aconteça também, com maior frequência ainda, nas cidades e províncias desprovidas de tais virtudes” (Tito Lívio). Mas há dias em que o sono vem – tranquilo e sereno – em forma de recompensa a quem nada deve. Na verdade, há que se encarar as flechas de areia como atos de desespero da gente que não reconhece, não agradece, nem ama ou se arrisca a entrar no mar. Mar meu no mar seu ou seu mar que imagino ser também eu. Por ser nosso mar, tanto mar, amar de toda a (des) humanidade.
E o pulso… ainda pulsa!
(Antônio Lopes, escritor; filósofo; professor universitário; mestre em Serviço Social e doutorando em Ciências da Religião/PUC-Goiás; mestrando em Direitos Humanos/UFG; membro do Conselho Editorial da Kelps Editora)