Não desrespeite Madame Satã
Diário da Manhã
Publicado em 2 de março de 2018 às 00:24 | Atualizado há 4 meses
“Eu reconheço que a pistola é minha/ Só que a danada disparou sozinha/ Mas não foi ela quem matou, nem eu/ Quem rebocou esse malandro foi Deus” diz a letra da música “Madame Satã” do grupo Mané Sagaz. Tanta história, um tanto delas lendas, sobre o corajoso Satã, que não aceitava desaforo.
Madame Satã era o nome pelo qual João Francisco dos Santos era conhecido na vida noturna carioca. Nascido em 1900 em Pernambuco, foi morar no Rio de Janeiro em 1907. Sua juventude, repleta de boemia e violência, rendeu muitas histórias fortes. Satã inspirou inclusive filme e livros que retratam episódios de sua vida.
João era negro, pobre e homossexual. Ele considerava a homossexualidade um vício e que ele era completamente viciado. Porém nas entrevistas que deu para jornalistas e escritores marginais da época não expressava culpa ou dúvida por seu “vício”, era seguro e extrovertido. E o principal nunca abaixava a cabeça, muito menos pra polícia, sua principal inimiga.
Satã quando considerava que lhe faltavam o respeito, desferia seus habilidosos golpes de capoeira, ou usava a navalha que possuía, marca do malandro que era. Por mais que a violência seja vista como algo abominável, o fato de uma pessoa completamente fora dos padrões de aceitação social não se curvar à opressão é um fato que chama a atenção.
O apelido pelo qual era conhecido veio de sua aparição no carnaval carioca como transformista. Sua extravagante fantasia foi inspirada em um filme musical americano da década de 30, da direção de Cecil B. Demille de nome Madam Satan. Ele criou para si vários personagens, se travestia de Mulata do Balacochê; de Jamacy, a Rainha da Floresta; Tubarão e Gato Maracajá. Muitas vezes se apresentou em cabarés cariocas.
POLÍCIA É CASO DE CAPOEIRA
“Essa mania da polícia chegar, bater e começar a fazer covardia, eu levantava e pedia a eles pra não fazer isso. Afinal de contas, se o sujeito estiver errado, eles prendam, botem na cadeia, processem, tá certo. Agora, bater no meio da rua fica ridículo. Afinal nós somos seres humanos. Eles achavam que eu estava conspirando contra eles, então já viu, né” disse Satã em entrevista ao Pasquim em 1971.
Seus enfrentamentos com a polícia carioca estão entre suas brigas mais famosas. Sua primeira prisão foi pelo assassinato de um guarda civil. Com seu jeito irônico, ele relatou o episódio a Millor Fernandes, em uma entrevista no ano de 1971 para o irreverente jornal O Pasquim.
Satã conta sua história ao jornalista: “Deram um tiro em um guarda civil na esquina da rua do Lavradio com a avenida Mem de Sá e mataram, né. Eu estava dentro do botequinzinho e disseram que fui eu” , na mesma entrevista Sergio Garcez pergunta se ele realmente atirou no guarda e ele responde: “Não, o revólver é que disparou na minha mão. Casualmente.”
Uma de suas peripécias que rodava nas conversas da Lapa é que ele havia retalhado o “traseiro” de um policial com uma navalha. O manejo da navalha era uma de suas especialidades. Observando através dos crimes que cometeu e a vida que levou está um inconformado, com o preconceito e perseguição que sofria por sua orientação sexual e por sua raça.
Segundo Satã, muitos crimes cometidos pela guarda civil foram colocados em suas costas, no total ele passou 27 anos e 8 meses na prisão. Ele relata que sofreu inúmeros casos de violência policial, entre surras e tentativa de assassinato, ao ser perguntado por Millôr se ele tinha raiva da opressão policial, Satã respondeu “Sempre tive e morro com ela”.
RETRATO DA CULTURA MARGINAL
Entre a literatura que conta a história do velho boêmio está Madame Satã- com o diabo no corpo, do autor Rogério Durst. Outra biografia escrita sobre ele é o livro Memórias de Madame Satã, narrado pelo próprio e redigido pelo jornalista Sylvan Paezzo. Ele poderia ter escrito suas próprias memórias de não fosse “analfabeto de pai e mãe”, como dizia.
Outra produção cultural que leva o nome de Madame Satã é um filme recente de 2002, parceria entre Brasil e França, dirigido por Karim Aiinouz. A estrela do filme, que interpreta o protagonista, é o reconhecido ator Lázaro Ramos. Apesar de ter um ator famoso por suas participações no cinema nacional, este filme não está entre os mais vistos ou comentados em termos de filmes brasileiros.