Frederico – Parte II
Diário da Manhã
Publicado em 28 de fevereiro de 2018 às 21:57 | Atualizado há 7 anos
O acabamento da estória – continuou o primo Bertoldo – é que meu pai teve de voltar para a fazenda, devido os negócios nas mãos de Juca Cipó não irem bem. Como nessa época a gente já possuia casa na cidade, nossa mãe dela ficou dela tomando conta, de maneira que meus irmãos mais velhos pudessem estudar. Naquele ano eu voltei com o pai, pois não tinha vaga para a série em que eu matricularia.
Com a ausência do tio Afrânio, que havia retornado antes à fazenda afim de auxiliar Juca Cipó, o Frederico, pouco acostumado com a engrenagem da cidade, virou o capeta. O pai, que já andava cansado das suas estripulias, decidiu então percorrer vários conhecidos da cidade a ver se algum viesse a adotar o bicho. Mas não teve êxito na intenção, achando por bem voltar com o macaco para a fazenda. No entanto, no meio da viagem, tomou a resolução de abandonar o danado no mato. Quando ia soltar ele da corrente, o bicho ensaiou uma mordida na mão do pai e virou um tiro no mato, com corrente e tudo.
Passados alguns dias, primo, rompia eu por um trieiro mais afastado da sede para armar uma arapuca num capão isolado, perto do riacho Peneira, que dividia a nossa propriedade de outra, quandefé ouvi um guinchado que me pareceu familiar. À medida que eu rompia o mato, mais perto me achava da origem dos guinchados. Até que bati os olhos em quem? Não é que ali estava o Frederico todo enroscado numa macega de espinhos, onde a corrente tinha se prendido? O pobre coitado era só o couro e o osso, sofrendo de sede e fome, à beira da morte.
Seria covardia se eu deixasse o Frederico morrer à míngua, afinal o macaco era como um parente meu que havia desaparecido. Tomando cuidado para não levar mordidas de boas vindas – mesmo assim o fidumaégua doido pra me cravar os dentes – cheguei até o bicho e desenrosquei a corrente, tirando ele da macega de espinhos. Livre, cismou de me agradecer: escalou meu corpo até a altura dos ombros, depois aboletou no topo de minha cabeça, eu com os cabelos em pé de medo. Disparou alguns grunhidos macacais, que eu, gelando até os ossos, acatei como palavras de agradecimento.
Não é de ver, primo, que nem me alembrei mais da arapuca? Feliz, tratei logo de me mandar com o Frederico, retornando à sede da Fazenda. Receoso de que meu pai zangasse comigo por ter trazido o macaco de volta, caprichei na explicação de que ele precisava de cuidados. Meu velho coçou a cabeça, contrariado com o retorno inesperado do Frederico, mas aquiesceu de momento, dizendo que o macaco poderia permanecer ali por uns tempos até ficar mais aprumado de saúde, sem mais detalhe do que pretendia fazer com ele. O tio Afrânio e Diofe, que faziam festa com o reaparecimento do peralta, logo ficaram de orelha em pé com aquele “até”.
Depois que as coisas entraram no eixo, com o recuperado Frederico ali entre nós aprontando de tudo, meu pai, indo a uma caçada de paca com o tio Osvaldo, urdiu em taciturno silêncio um plano, resolvendo, sem que ninguém desse fé, levar o macaco num saco de aniagem. Na curva da estrada, já na boquinha da noite, lugar ermo bem longe da sede da fazenda, pediu que ao tio apeasse do cavalo e soltasse o traquinas naquelas imediações, onde corria um riacho. O bicho, serelepe, tratou logo de se escafeder no entrescuro…
Assim, não houve mais notícia do Frederico. Ao tio Afrânio e ao Diofe, quando dele dessem falta, ficou combinado entre meu pai e o tio Osvaldo que era pra dizer que o bicho se soltara e fugira da sede e ninguém sabia o paradeiro, que era quase certo ter virado almoço de uma onça que andava nas redondezas. Uma mentirinha à toa, para não magoar o tio e o menino. Ficava o assunto morto entre os dois, servindo de testemunhas apenas as primeiras estrelas apontando no firmamento.
Quando o menino Diofe desse por falta do Frederico e viesse logo dando o alarme, o pai já havia arquitetado uma sólida justificativa para a ocasião:
– Trem mais bão esse sumiço, ara! Tomara que nunca mais volte esse macaco infernal. O peralta aprendeu a remexer em tudo, rasgando sacos de mantimentos, abrindo compotas e lambuzando as mãos, depois emporcalhando os móveis, paredes, revirando tudo. Enfim, a essa hora já deve de ter virado almoço da onça que ronda aqui por perto, que, empanturrada, lambe os bigodes…
Certo era que ao ouvir isto, o menino Diofe prorromperia em desabridas lágrimas e que o tio Afrânio, tomando as dores, acudiria depressa em ir consolar o pobrezinho.
No outro dia pela manhã, no regresso da caçada, os dois caçadores de longe avistaram a aglomeração na porta da casa. Dona Filó veio de encontro deles, mãos na cabeça, num desespero que dava dó:
– Acode o Simplício, pelo amor de Deus, compadre!
– Acalma, dona Filó. O que tem seu marido?
– Depois do almoço danou a passar mal, lançou o que havia almoçado, após foi ficando mole… Está lá prostrado na cama, olhos revirados, a baba escorrendo, tomado de desfalecimento. Tomou uma cor cinza azulada… Corram lá, antes que seja tarde!
Meu pai e tio Osvaldo apearam e apressaram o passo rumo à casa. Quando adentraram os aposentos viram que o caboclo estava muito mal. Meu tio apressou-se a pedir ao Juca Cipó que trouxesse a velha caminhonete, carecia levar imediatamente o moribundo ao Hospital da cidade mais próxima.
Chegando a caminhonete, os peões carregaram o Simplício e colocaram ele deitado no banco traseiro da boleia. Dirigiram a toda velocidade rumo ao socorro, o meu pai ao volante, o Juca Cipó no banco traseiro, com a cabeça do enfermo ancorada nas suas pernas. O tio Osvaldo ficara para amainar o alvoroço das pessoas.
Minha mãe, tão logo a caminhonete saiu levantando poeira, foi averiguar a despensa. Tudo remexido, só podia ser o demônio do Frederico. Viu dilaceradas as caixas dos minúsculos grãos de veneno para ratos. Matutava, tirando conclusões. Só podia ser o infeliz do Frederico, que antes de ser solto, no dia anterior, aprontara das suas. Bem capaz de ser ele que envenenou a comida do Simplício, enquanto este deixou o prato sobre a mesa da varanda para ir tomar sua aguardente. Relembrava que estava na cozinha quando o matuto passou, deixando a sós o prato sobre a mesa. Mas não vira o macaco, após ter voltado a atenção no preparo da sobremesa.
No outro dia, a chusma de peões debaixo do jatobazeiro, em frente ao alpendre da casa, ansiosos de notícias do Simplício. Alguns preparavam a palha do cigarro na lâmina do canivete, outros já enrolavam o fumo, acionavam o fogo da binga e soltavam as primeiras baforadas de fumaça para o alto. Punham os olhos compridos na curva da estrada, esperando o regresso da velha caminhonete. O vaqueiro João Curiango, acocorado, riscava o chão com um graveto, enquanto, de pé frente a ele, Juvêncio dizia:
– Bem capaz dele não sair dessa, o pobre.
– Deixe de remorso, homem. Está esquecido que também troçou dele…
– Ara, João Curiango, ind’agora me arrependo. No fundo a gente gosta dele.
– E esse troço que tão espalhando aí? Que foi a mulher dele que aprontou?
– Eu mesmo num querdito nisso, João Curiango. E o sinhô?
Quando este ia responder, o peão Anacleto deu o alerta e todos atentos observaram a poeira subir na curva da estrada. Logo a velha caminhonete estacionou sob o frondoso pé de Jatobá. Choveram perguntas, mas o Senhor Valfredo, com ar de cansaço, disse:
– Primeiro vou ter uma prosa lá dentro com sinhá Adalgisa, que depois virá ter com os senhores.
A demora fora pouca, embora para a ansiosa aglomeração à sombra do enorme jatobazeiro, fosse um tempão desmedido. Até que na porta minha mãe apontou, desceu os degraus da escadaria do alpendre que dava para o terreiro e, pedindo silêncio e a atenção de todos, disse:
– Pois bem, pessoal. A notícia é amarga: o Simplício deixou a gente, passou dessa pra melhor…
– Mas o que se sucedeu, sinhá Dalgisa? Qual foi a causa?
– O doutor disse que ele foi envenenado.
– E desconfiam de quem foi o miserável que acometeu o desatino?
– O macaco Frederico.
Ficaram pasmos, esperavam que a resposta fosse outra. Mas colocar a culpa num macaco, ninguém dava fé. Após serenar os espíritos mais afoitos, minha mãe continuou:
– O Frederico, cremos, antes de desaparecer, aprontou um pandemônio na despensa, sendo que – só pode ter sido ele – despejou veneno de rato no prato do Simplício, quando ele abandonou o prato para ir na cozinha tomar seu trago de costume. Na volta, como os grãos eram muitos miúdos, o inocente nada viu e limpou o prato.
Interrompi a narrativa do primo Bertoldo para fazer uma observação:
– Será que podemos culpar o Frederico de uma possível vingança pela morte da sua mãe-macaca? Considerando, primo, que nossos irmãos símios tenham um resquício de massa cinzenta?
– Massa cinzenta ou não, o certo é que a vingança estava feita. – Respondeu o primo Bertoldo.
No outro dia, o corpo do finado voltara à fazenda para ser velado e enterrado, como era o seu desejo, no pequeno cemitério que lá havia no vilarejo próximo.
A última imagem que tive do Frederico nenhuma outra pessoa percebera. Era o momento em que quatro homens carregavam o caixão até o carro de boi que levaria o finado ao cemitério. O Frederico estava nas grimpas de um pé de ingá que ficava no quintal da nossa casa. Mastigava os frutos e jogava as cascas lá de cima, com o olhar comprido no cortejo que seguia lento o carro de boi onde ia o caixão, até a cantiga de suas rodas não se ouvir mais estrada afora.
Ainda bem que permanecera sempre calado o traquinas no alto do ingazeiro, pois se vissem ele não faltaria quem o derribasse com um tiro. Depois deste ocorrido, findo a estória, pois nunca mais vi o endiabrado Frederico nem tive notícia dele.
(Joaquim Azevedo Machado, escritor)