Os “trieiros”, caminhos, estradas e andanças na história de Goiânia
Diário da Manhã
Publicado em 27 de fevereiro de 2018 às 23:13 | Atualizado há 7 anos
Na história de Goiás há um espaço especial para o carro de bois no alavancar do progresso. Goiânia foi traçada e levantada, também, na força dos bois e dos carreiros.
Carro de boi, transporte pesado, rústico, lento. Seu nostálgico cantar já foi inspiração para poetas, para cantores de alma apaixonada para os saudosistas dos tempos idos, na distante época em que este veículo sustentou a economia agrária do, país.
Na história dos transportes no Brasil o carro de boi ocupa um espaço todo especial, principalmente na região das minas gerais e nas minas de Goiás, no sertão do Brasil Central, distantes dos centros mais adiantados do país. Nas grandes cidades do século passado como a capital do Rio de Janeiro, São Paulo e Ouro Preto o transporte mais usual eram as famosas literais, as cadeirinhas, ou mesmo os famosos côches puxados por cavalos, transporte das famílias mais abastadas.
Nas obras históricas de Rosarita Fleury encontramos citações referentes aos transportes da antiga capital no século passado, assim como nos escritos dos jornais da época que davam ênfase ao uso das literais pelas moças das famílias tradicionais, sendo estas carregadas por escravos nas acidentas e tortuosas ruas da Cidade de Goiás.
Era esse o ambiente social da província de Goiás no século passado. Com uma população mais centrada na zona rural, as poucas cidades constituíam-se de pequenos aglomerados, tendo supremacia apenas Vila Boa, Pirenópolis, Santa Cruz e Traíras, as outras ficavam isoladas no alto sertão, atingidas apenas pelos rústicos transportes da época, dentre estes, o carro de boi que foi utilizado em larga escala como transporte de mercadorias da zona rural para mercado da Cidade de Goiás (então único da Província) onde eram comercializadas e destinadas ao abastecimento da antiga Capital.
As tropas de burros também exerceram decisivo papel de difusão cultural e transfusão de notícias, mas, responsável pelo intercambio mais pesado era mesmo o Carro de boi que, naquelas eras, chegou a transportar pianos de Araguary, ponto final da Estada de Ferro, até a Capital em viagens que eram verdadeiras epopeias e duravam meses em custosas travessias de vales, serras e rios.
No tocante à participação do Carro de boi na Romaria do Divino Pai Eterno do Arraial do Barro Preto não existe fonte exata de seu início, pois, ao certo, não existe mesmo data certeira do início da Romaria.
Sabe-se que esta fomentou em meio a gente simples do sertão goiano, utilizadores do Carro de boi para suas diversas atividades, certamente, as de viagens como a que se destinava aos festejos religiosos e profanos da Romaria. Com muita eficiência escreveu Wilson Cavalcante Nogueira sobre o Carro de boi relatando a importância histórica desse veículo.
Sobre a participação dele na Romaria do Divino, encontramos em escritos de Augusta de Faro Fleury Curado, Edmundo Pinheiro de Abreu e José Xavier de Almeida informações valiosas e descritivas da Trindade de antanho, assim como nas memórias do grande goiano Licardino de Oliveira Ney.
Tornou-se tradição então a presença do Carro de boi na Romaria do Divino Pai Eterno resgatando nossas legítimas tradições e mesmo depois do aparecimento do automóvel nas plagas goianas a partir de 1918, a Romaria do Divino continuou a única a ter ainda o legado do Carro-de-Boi nas ruas de sua cidade num período em que já imperava a transformação impulsiona da pelo progresso.
Irmanados pelo espírito cristão os carreiros continuam mantendo acesa a chama da fé e da tradição, enfrentando toda sorte de intempéries, dificuldades, cruzam os sertões buscando a luz bendita que emana do Divino Pai Eterno, protetor da gente sertaneja.
Os velhos caminhos que cruzaram Goiás em tempos diferentes eram estradas carreiras e tropeiras que seguiam ainda as marchas dos bandeirantes que, outrora, haviam atravessado o grande sertão do oeste na busca de infindas riquezas e de prestígio junto à Coroa de Portugal.
Em nossa região, marcada pela história da agricultura e da pecuária, há registros antigos de caminhos e rotas que marcaram a busca de gado e de lugares ideais para a agricultura, evidenciando a riqueza do chão, nas imediações de Bonfim de Goiás, então enorme julgado que compreendia toda essa região.
As primeiras estradas foram também delineadas por viajantes que seguiam rotas antigas que foram marcando limites entres as vilas e povoados perdidos no alto sertão. Esses viajantes e pesquisadores foram também importantes porque delinearam nossa fauna e flora e muitas outras curiosidades que são hoje peças fundamentais aos pesquisadores de nossas origens e de nossos autênticos costumes.
Primeiros caminhos de Campininha das Flores levavam à capital, Cidade de Goiás, passando por Goiabeiras, Catingueiro Grande e Curralinho, abrindo braços para Mossâmedes que iria desaguar no então florescente povoado de Anicuns, um dos últimos do ouro.
Por outro ângulo, abria-se para o caminho de São Sebastião do Alemão e Santa Luzia de Mario Mello, caminho de Mato Grosso. Abrindo-se para Campininha das Flores, passava-se por Bananeiras, Vila Bela de Nossa Senhora do Carmo de Morrinhos, Caldas Novas e Santa Rita do Paranaíba, nomes hoje modificados para outras grandes e florescentes cidades que englobam o universo dessa grande terra goiana.
Caminhos do passado, estradas salineiras, estradas tropeiras, estradas carreiras, estradas de paus de arara. Tempo de ontem na saga de homens e mulheres que lutaram com dificuldades e venceram os limites do próprio tempo.
Os romeiros do Divino Pai Eterno de Trindade sempre tiveram coragem e destemor para chegar à terra da devoção. Caminhando léguas e léguas em meio ao sol e à poeira, nos carros de bois, em lombos de animais, em improvisados transportes, os devotos sempre encontraram uma forma de manifestarem a sua fé e a sua emoção em nossa bucólica e cabocla romaria.
Com o surgimento dos automóveis nos anos de 1920 e quando estes passaram a adentrar o Estado de Goiás pelo sudoeste, logo surgiram os primeiros romeiros que se aventuraram pelas estradas carreiras em automóveis vagarosos no caminho para nossa admirável Trindade.
Já nos anos de 1940 com a melhoria de algumas estradas, os primeiros caminhões iniciaram o transporte de cargas da roça para a cidade. Assim, também, os aventureiros e romeiros passaram a utilizar esses caminhões então cobertos de lona na carroceria para viagem a Trindade. Era o surgimento dos paus de arara que traziam gente por encomenda até a nossa cidade.
Como tudo era improvisado, na carroceria eram fixadas tábuas que serviam de bancos. Assim, nos caminhões maiores haviam vários bancos onde eram “empoleirados” os romeiros, colocados assentados juntos e amontoados, colocavam uma armação de lona por cima da carroceria, eram colocados também nos assoalhos as matulas dos romeiros, as latas com doces e biscoitos e tudo pronto, comendo poeira, vinham aos montes para Trindade, numa simplicidade e alegria sem iguais.
Nos paus de arara, muitos professaram sua fé e viveram seus sonhos do encontro com o mistério da Santíssima Trindade, alimentando o corpo e o espírito em nossa terra.
Assim, é possível estudar os caminhos da região da hoje Goiânia antes, durante e depois de seu surgimento, com o advento dos carros de bois, os primeiros automóveis, as primeiras estradas, as primeiras jardineiras e a locomoção de pessoas nessa região que hoje se constitui o aglomerado urbano da capital.
Faz muito tempo, naquela ditosa quadra, “época de pardais e verde nos quintais” que o transporte rudimentar, iniciado com os pesados carro-de-bois cortando estradas sertanejas, foram substituídos pelos primeiros automóveis que em 1916 romperam de Santa Rita do Paraíba (Hoje Itumbiara) e Jataí, alcançado a distante cidade de Goiás, então capital do Estado, sob a direção segura do primeiro chofer goiano que foi José Sabino de Oliveira.
Com a criação das primeiras estradas de rodagem, em especial a “Auto Viação Sul Goyana”, em 1919, equipada com frotas de automóveis comerciais em Jataí, a Cia de automóveis de Pílade Baiochi, em Goiás, velha capital, teve início o tráfego de veículos comerciais no Estado, sendo que em Goiânia, o pioneiro foi Joaquim Luís Brandão do Couto.
Em Trindade, o primeiro veículo, um Ford, pertenceu a João de Oliveira (Bembem) nascido em 1909, residente no largo da Matriz, que empreendia viagens comerciais, principalmente com a nova capital, Goiânia, nascida no arrojo de Pedro Ludovico Teixeira.
Com o desenvolvimento da indústria de autos, surgiram as românticas jardineiras, sendo que em Goiânia foi famosa a “Tareca” que fazia o trajeto “Praça Cívica” e “Largo da Matriz” de Campinas.
Em Trindade, a jardineira pioneira foi á alcunhada “jardineira do Chiquinho” que iniciou o seu trabalho em 1918. Francisco Cândido de Lima, o famoso “Chiquinho da Jardineira” nasceu em Rio Alegre, município de Santa Maria da Vitória, no Estado da Bahia, filho de José Nunes de Lima e Leopoldina Cândida da Conceição e Lima.
O “Chiquinho da Jardineira” residiu em Bauru (SP), Novo Brasil (GO), Marília (SP) e Trindade, onde ficou por 33 anos, ocasião em que saiu da zona rural onde vivia e passou a trabalhar de chofer com os padres redentoristas e depois com o famoso José Braz.
A custa de grande sacrifício conseguiu comprar uma perua que entitulou de “amorosa” que foi o embrião de sua firma de transporte domiciliar individual.
Em 19 de maio de 1954, comprou uma jardineira, iniciando o “Expresso Chegou” apelido com a frase obvia “Chiquinho Chegou”, adquirindo-a em sociedade com Antônio Machado Neto e Joaquim Cândido Neto, registrando-a firma com razão social “Lima e Machado Ltda”, mais tarde, comprando as partes dos outros sócios, ficou dono sozinho do arrojado empreendimento.
Miguel Cazé tem, também, um espaço garantido na história dos transportes em Trindade pelo seu arrojo e tenacidade em vencer as barreiras do tempo e se firmar numa época tão adversa ao florescer de suas múltiplas atividades.
A presença dos automóveis na história de Trindade data de 1917 quando um Fordinho, vindo de Itaberaí, realizou a façanha de vencer as estradas carreiras e os muitos atoleiros, deixando embasbacados os matutos romeiros daquelas distantes eras.
Seu motorista foi Antônio Xavier Guimarães (Totó Guimarães) conhecido “cometa” ou representante comercial das grandes lojas do Rio de Janeiro e São Paulo, trazendo o que de mais fino havia para o agrado da exigente sociedade goiana, principalmente da velha capital do Estado, Cidade de Goiás.
O primeiro que se tem noticia de possuir automóvel em Trindade foi Manuel Baiano, seu Ford-bigode foi sucesso nos anos 20 nas empoeiradas ruas de Trindade, matando muitas galinhas desprevenidas e deixando estupefatos os provincianos trindadenses, não afeitos ainda às invenções do “questionável” progresso.
Esse destemido motorista realizou a façanha da primeira viagem e automóveis para Campininhas das Flores, vencendo as barreiras do caminho, as pinguelas, os atoleiros, as matas derrubadas, os desvios, os rios, enfim, conseguiu avistar a velha cidade do Coronel Joaquim Lúcio e de Licardino Ney.
Apesar do esforço, Manuel Baiano, na descida do Córrego Cascavel, não conseguiu segurar o freio e foi parar dentro d’água. O segundo a ter automóvel foi João de Oliveira (Bem-Bem) que já no final dos anos 20 promovia viagens para Alemão (palmeiras), Ribeirão (Guapo), Campininha das Flores, Pouso Alto (Piracanjuba) e Sussuapara (Bela Vista), que eram verdadeiras epopeias, de lutas e sofrimentos. Outros abastados comerciantes e fazendeiros em Trindade possuíram automóveis como Custódio Gedda (Bichinho), Nicodemos Nery, Thibúrcio do Carmo, Antônio Batista Ottoni, e muitos outros.
Trindade ou Barro Preto de outrora, enquanto ligada a Campininha em proximidade geográfica e sentimental sempre foi muito próxima, porque outras limítrofes como Goiabeiras, Leopoldo de Bulhões, Bela Vista de Goiás, Santana das Antas e Ribeirão eram distantes cerca de 70 a 100 km.
Os velhos caminhos foram sendo mudados e as rotas que passavam na Cruz das Almas e no túmulo do Professor Moyses Batista passando pelo córrego Bruacas, Córrego Caveira, e Morro do Mendanha mudaram bastante. Há, inclusive, bela crônica de Venerando de Freitas Borges que ressalta sobre esse velho caminho numa noite de temporal em 1919.
Um novo caminho de asfalto foi feito em 1948, passando pela velha chácara do cel. João Braz, o córrego Barreirinho e Bugre, encurtando distâncias. Esse novo caminho tornou mais perto Trindade da Capital, e se transformou numa longa avenida com fábricas e setores adjacentes.
Também em Goiânia, depois da “Tareca” surgem as primeiras jardineiras, pelo pioneirismo dos empresários Odilon Santos, João Pedatela, Pílade Baiocchi e Francisco Cândido de Lima, transportando trabalhadores das primeiras grandes obras da nova capital de Goiás.
Com a expansão desordenada de Goiânia já no final da década de 1940, a década seguinte dos “anos dourados” do bolero seria de dificuldades para a gente pobre que vinha tentar a sorte na “tal da goiana”. Muitos bairros adjacentes ou distantes já faziam parte do cenário de uma cidade que não parava nunca de crescer. Urgia os primeiros “bodinhos”, pequenos ônibus que foram circulando pela “Viação Araguarina” de Odilon Santos.
Dos anos de 1950 até o presente o que se verifica é o caos. Agregaram-se outras empresas como Viação Goiânia, Viação Paraúna, Viação HP, Viação Reunidas, Viação Rápido Araguaia, Viação Guarany, Viação Reunidas, Metrobus, Leste, além da criação da Transurb.
Até os anos de 1970 o transporte coletivo de Goiânia era feito e administrado sem a tutela do poder público, tanto municipal quanto estadual, por empresas familiares e pequenas onde tudo era improviso e sem planejamento prévio. Foi nas gestões de Manoel dos Reis e Silva na Prefeitura Municipal de Goiânia e Irapuan Costa Junior no governo do Estado que houve o primeiro engajamento de políticas públicas voltadas ao setor do transporte coletivo de Goiânia.
Nesse período de planejamento do transporte a Viação Araguarina entrou no sistema fazendo a linha de ônibus entre Goiânia e Campinas, utilizando as avenidas Anhanguera e 24 de outubro. Em 1969 houve a primeira licitação de linhas quando a HP Transportes. Em 1970 Goiânia tinha 533 mil habitantes e 55 linhas de ônibus.
Mesmo assim essas linhas não eram satisfatórias para uma cidade que crescia desordenadamente. Em 10 de novembro de 1975 pela Lei 7975 foi criada a Transurb, estatal para gerenciar e operar parte do transporte coletivo da cidade. Com a expansão urbana houve a conurbação dos municípios vizinhos, forçando o sistema a mudar, com o crescente aumento da demanda.
O transporte alternativo adentrou para o sistema de transporte coletivo de Goiânia desde 1997 com circulação de micro-ônibus, vans e Kombis que circulavam de forma irregular pelas ruas da cidade, transportando passageiros. Houve forte disputa entre esse setor paralelo e os empresários. Somente em 24 de agosto de 1999 o mesmo foi regularizado.
Em 12 de novembro de 1988, há 30 anos. foi inaugurada a Rodovia dos Romeiros, com 16 quilômetros duplicados, arborizados e com os 14 painéis do artista plástico Omar Santo, reconstituindo algumas passagens bíblicas uma das mais originais vias temáticas do mundo e a maior a céu aberto.
Construída no governo de Henrique Santillo, a Rodovia foi uma prova de amor e fé aos romeiros de Trindade. Edificada logo após o acidente radioativo do Césio 137 de Goiânia, o artista Omar Souto colocou junto a Cristo, em cada estação, a figura do anjo Leide das Neves, a maior vítima do acidente de Goiânia.
Os antigos caminhos do Barro Preto ficaram perdidos no ontem. As velhas estradas de poeira vermelha foram sendo cobertas do negro asfalto do hoje e se desligaram do itinerário dos homens, ficando apenas na recordação daqueles que amam o passado.
O então governo Henrique Santillo fez uma apoteótica inauguração numa bela tarde de chuva, renovando o tempo e imortalizando a arte sacra no antigo caminho dos velhos romeiros que pisaram a poeira dos caminhos dos tempos de outrora.
E assim os velhos caminhos da região de Goiânia se transformaram em artérias entupidas do atual inchaço urbano que tem dificultado a vida de muitas pessoas que residem nesse emaranhado que se tornou a Região da capital do Estado de Goiás.
(Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado, graduado em Letras e Linguística pela UFG, especialista em Literatura pela UFG, mestre em Literatura pela UFG, mestre em Geografia pela UFG, doutor em Geografia pela UFG. Pós-doutorando em Geografia pela USP, professor, poeta – bentofleury@hotmail.com