Tributo a José Fernandes – uma presença iluminada
Diário da Manhã
Publicado em 26 de fevereiro de 2018 às 22:06 | Atualizado há 7 anosO post do Thiago Fernandes comunicando o falecimento, naquela tarde, de seu paizinho José Fernandes, foi sentido por mim, e por muitos, como uma faca feridora, cortando os tecidos da alma.
Um choque, do qual só aos poucos fui me restabelecendo.Mesmo sabendo, como escreveu Guimarães Rosa, que “nesta vida horária não podemos encerrar fechar parágrafos, quanto mais encerrar capítulos”.
Senti a perda do amigo e confrade José Fernandes como quem se sente ao ver desaparecer no tempo e na paisagem o seu irmão um pouco mais velho.Uma pessoa extraordinária, dotada de inteligência excepcional, com grande potencial de gentileza e bondade.
Qualidades humanas que fizeram dele uma pessoa querida e amada, em todos os Estados e Universidades – os ambientes todos que freqüentou.
Alunos, professores, orientandos e orientadores acadêmicos, como ele – colegas escritores, os que tiveram com ele relação de encontro ou convívio.
José Fernandes jamais tirou lições sábias, da profunda simplicidade em que fez-se menino, jovem e adulto, em família pobre de recursos materiais, porém rica em vida produtiva e harmoniosa com a natureza.
Daí tirou forças para, com dificuldades extremas, iniciar e concluir sua formação universitária. A intuição – ou revelação – dos caminhos possíveis a seu talento, fizeram-no seguir a voz da vocação de seu intelecto e de sua alma.
Sua alma mística, sua fé cristã, sua devoção ao espírito que anima todas as coisas viventes, deram-lhe forças para vencer as dificuldades da jornada. Assim alavancou seus estudos, pós-graduando-se em Florianópolis, onde teve por aluno David Gonçalves, seu orientando, de quem se fez amigo inseparável, por todos os dias restante existência.
De lá aportou em Mato Grosso,onde também contribuiu muito, tendo sido um dos primeiros críticos e ensaístas brasileiros a perceber o valor excepcional da surpreendente e original dicção poética de Manoel de Barros. Quando ninguém falava de Manoel de Barros, no Brasil, José Fernandes escreveu o livro-ensaio: “O poeta do pantanal”.
Assim foi José Fernandes: um descobridor de talentos – um incentivador de todo autor em quem visse um valor autêntico, uma marca de originalidade e presença marcantes.
A perspicácia e profundidade de seu olhar crítico levaram-no ao pioneirismo de escrever sobre a literatura do absurdo, ou do estranhamento, na ficção brasileira – ressaltando dentre os textos obras de Bernardo Élis e José J. Veiga. A poesia visual, o concretismo, bem como outras vanguardas, foram objeto de valiosos estudos feitos por ele.
Seus profundo conhecimento da tradição mística do Ocidente levaram-no a produzir um livro referência sobre a cabala.Conhecia bem tanto o grego antigo quanto o latim, daí a naturalidade com que transitava pelos caminhos culturais e espirituais dos povos da antiguidade.
José Fernandes foi o primeiro autor, em Goiás, a escrever ensaio analisando em profundidade os contos do meu livro Monólogos da angústia. Examinou com argúcia o que há de angústia existencialista naquelas ficções tiradas do cerne da vida. Minha produção poética, a partir do Hotel do tempo, também foi objeto de penetrantes análises críticas de sua lavra.
Em reuniões da Academia Goiana de Letras, em sua chácara, em Santo Antonio, nos arredores de Goiânia, estive com José Fernandes.
No lançamento em petit comitê, de um romance de David Gonçalves, foi das últimas vezes em que estive com ele, sua família, seus amigos, professores da PUC, e escritores amigos dele e de David Gonçalves.
Sempre que lá fui, cheguei pilotando a minha motocicleta. Desta vez quase o matei de susto. Na pressa de abraçá-lo, mal coloquei minha moto no descanso, fui entrando, sem tirar de todo o capacete. José ficou lívido.
“Mas é você, Brasigóis? Quase me matou de medo.Achei que era um assalto.”Mesmo morando ele em um condomínio fechado?, indaguei. Rimos muito, ao abraçá-lo, dizendo: vim assaltar você, professor.
Levar todos os seus livros… De outro encontro nosso, em sua chácara, depois de delicioso almoço preparado por seu amigo Pitoco, já no fim da tarde, caiu uma chuvarada daquelas. Parecia ter tomado conta de toda Goiânia.Tempo fechado e sujeito a trovoadas e bordoadas.
José Fernandes e Sônia foram contra minha partida sob aquela chuvarada.Queriam que eu dormisse na casa deles.Mas eu sou teimoso e imprevidente. Disse que daria tempo, era uma chuvinha à toa. Qual nada! Foi uma tromba d água.
Sorte minha que o amigo comum, professor-escritor Giovani Ricciardi, em cuja honra se fizera o encontro festivo, fez questão de emprestar-me a sua capa de chuva. Com histórico de enfrentamento de muitas borrascas romanas. Foi-me muito útil.
Molhei-me bastante, mas não tanto quando me entanguiria de frio, se estivesse sem a capa. Que devolvi na semana seguinte, em reunião em nossa AGL, onde José Fernandes, ao lado de Giovanni, profeririam palestra.
Tantas histórias poderia contar aqui de e sobre José Fernandes, o querido amigo e colega, com quem sempre estive em convívio, desde que ele chegou em Goiás, lugar deste mundo que ele amou, e a ele muito deu, em contribuição cultural e cidadã.
Povo e lugares que lhe foram gratos, e reconheceram o valor de seu trabalho, enquanto ele em nossos páramos esteve, com presença irradiadora, sempre, de inteligência e bondade.
Salve, amigo José Fernandes! Sua lembrança estará sempre comigo, a inspirar e impregnar de bondade, gentileza e amorosidade os encontros de vivo que venha a ter, em meus dias crepusculares.
Praia do farol, 24.02.018
(Brasigóis Felício, escritor e jornalista. Integra os quadros de várias entidades culturais, dentre elas Academia Goiana de Letras e Ube-GO – União Brasileira de Escritores, seção de Goiás)