Opinião

As escrituras patriarcais falam do feminino

Redação DM

Publicado em 23 de fevereiro de 2018 às 23:42 | Atualizado há 7 anos

Fun­da­men­tal­men­te im­por­ta re­co­nhe­cer que a tra­di­ção es­pi­ri­tual ju­dai­co-cris­tã vem ex­pres­sa pre­do­mi­nan­te­men­te no có­di­go pa­tri­ar­cal. O Deus do Pri­mei­ro Tes­ta­men­to (AT) é vi­vi­do co­mo o Deus dos Pa­is, Abra­ão, Isa­ac e Ja­có, e não co­mo o Deus de Sa­ra, de Re­be­ca e de Mi­ri­am. No Se­gun­do Tes­ta­men­to (NT), Deus é Pai de um Fi­lho úni­co que se en­car­nou na vir­gem Ma­ria, so­bre a qual o Es­pí­ri­to San­to es­ta­be­le­ceu uma mo­ra­da de­fi­ni­ti­va, coi­sa que a te­o­lo­gia nun­ca deu es­pe­ci­al aten­ção, por­que sig­ni­fi­ca a as­sun­ção de Ma­ria pe­lo Es­pí­ri­to San­to e des­ta for­ma co­lo­can­do-a do la­do do Di­i­vi­no. Por is­so se pro­fes­sa que é Mãe de Deus.

A Igre­ja que se de­ri­vou da he­ran­ça de Je­sus é di­ri­gi­da ex­clu­si­va­men­te por ho­mens que de­tém to­dos os mei­os de pro­du­ção sim­bó­li­ca. A mu­lher foi con­si­de­ra­da, por sé­cu­los, co­mo não-per­so­na ju­rí­di­ca e até ho­je é ex­cluí­da sis­te­ma­ti­ca­men­te de to­das as de­ci­sões do po­der re­li­gi­o­so. A mu­lher po­de ser mãe de um sa­cer­do­te, de um bis­po e até de um Pa­pa, mas ja­mais po­de­rá ace­der a fun­ções sa­cer­do­tais. O ho­mem, na fi­gu­ra de Je­sus de Na­za­ré, foi di­vi­ni­za­do, en­quan­to, a mu­lher é man­ti­da, se­gun­do a te­o­lo­gia co­mum, co­mo sim­ples cri­a­tu­ra, em­bo­ra no ca­so de Ma­ria, se­ja fei­ta Mãe de Deus.

Ape­sar de to­da es­ta con­cen­tra­ção mas­cu­li­na e pa­tri­ar­cal, há um tex­to do Gê­ne­sis, ver­da­dei­ra­men­te, re­vo­lu­ci­o­ná­rio, pois afir­ma a igual­da­de dos se­xos e sua ori­gem di­vi­na. Tra­ta-se do re­la­to sa­cer­do­tal (Pri­es­terko­dex es­cri­to por vol­ta do sé­cu­lo VI-V a.C.). Aí o au­tor afir­ma de for­ma con­tun­den­te: “Deus cri­ou a hu­ma­ni­da­de (adam em he­brai­co que sig­ni­fi­ca os fi­lhos e fi­lhas da Ter­ra, de­ri­va­do de ada­mah: ter­ra fér­til) à sua ima­gem e se­me­lhan­ça e cri­ou-os ho­mem e mu­lher”(Gn 1,27).

Co­mo se de­pre­en­de, aqui se afir­ma a igual­da­de fun­da­men­tal dos se­xos. Am­bos lan­çam sua ori­gem em Deus mes­mo. Es­te só po­de ser co­nhe­ci­do pe­la via da mu­lher e pe­la via do ho­mem. Qual­quer re­du­ção des­te equi­lí­brio, dis­tor­ce nos­so aces­so a Deus e des­na­tu­ra nos­so co­nhe­ci­men­to do ser hu­ma­no, ho­mem e mu­lher.

No Se­gun­do Tes­ta­men­to (NT) en­con­tra­mos em São Pau­lo a for­mu­la­ção da igual dig­ni­da­de dos se­xos: “não há ho­mem nem mu­lher, pois to­dos são um em Cris­to Je­sus”(Gl 3,28). Num ou­tro lu­gar, diz cla­ra­men­te: “em Cris­to não há mu­lher sem ho­mem nem ho­mem sem mu­lher; co­mo é ver­da­de que a mu­lher pro­ce­de do ho­mem, é tam­bém ver­da­de que o ho­mem pro­ce­de da mu­lher e tu­do vem de Deus”(1Cor 11,12).

Além dis­so, a mu­lher não dei­xou de apa­re­cer ati­va­men­te nos tex­tos fun­da­do­res. Nem po­de­ria ser di­fe­ren­te, pois sen­do o fe­mi­ni­no es­tru­tu­ral, ele sem­pre emer­ge de uma for­ma ou de ou­tra. As­sim na his­tó­ria de Is­ra­el sur­gi­ram mu­lhe­res po­li­ti­ca­men­te ati­vas co­mo Mi­ri­am, Es­ter, Ju­di­te, Dé­bo­ra ou as an­ti-he­ro­í­nas co­mo Da­li­la e Je­za­bel. Ana, Sa­ra e Ru­te se­rão sem­pre lem­bra­das hon­ro­sa­men­te pe­lo po­vo. Ini­gua­lá­vel é o idí­lio, nu­ma lin­gua­gem al­ta­men­te eró­ti­ca, que cer­ca o amor en­tre o ho­mem e a mu­lher no li­vro do Cân­ti­co dos Cân­ti­cos.

A par­tir do sé­cu­lo ter­cei­ro a. C. a te­o­lo­gia ju­dai­ca ela­bo­rou uma re­fle­xão so­bre a gra­ci­o­si­da­de da cri­a­ção e da elei­ção do po­vo na fi­gu­ra fe­mi­ni­na da di­vi­na So­fia (Sa­be­do­ria; cf. to­do o li­vro da Sa­be­do­ria e os pri­mei­ros dez ca­pí­tu­los do li­vro dos Pro­vér­bi­os). Bem o ex­pres­sou a co­nhe­ci­da te­ó­lo­ga fe­mi­nis­ta E. S. Fi­o­ren­za, “a di­vi­na So­fia é o Deus de Is­ra­el na fi­gu­ra da deu­sa”(As ori­gens cris­tãs a par­tir da mu­lher, São Pau­lo 1992 p. 167).

Mas o que pe­ne­trou no ima­gi­ná­rio co­le­ti­vo da hu­ma­ni­da­de, de for­ma de­vas­ta­do­ra, é o re­la­to an­ti-fe­mi­nis­ta da cri­a­ção de Eva (Gn 1,l8-25) e da que­da ori­gi­nal (Gn 3,1-19: li­te­ra­ri­a­men­te o tex­to é tar­dio, (por vol­ta do ano 1000 ou 900 a.C). Se­gun­do es­te re­la­to, a mu­lher é for­ma­da da cos­te­la de Adão que, ao vê-la, ex­cla­ma: “eis os os­sos de meus os­sos, a car­ne de mi­nha car­ne; cha­mar-se-á va­roa (is­há) por­que foi ti­ra­da do va­rão (ish); por is­so o va­rão dei­xa­rá pai e mãe pa­ra se unir à sua va­roa: e os dois se­rão uma só car­ne”(Gn 2,23-25). O sen­ti­do ori­gi­ná­rio vi­sa­va mos­trar a uni­da­de ho­mem/mu­lher (ish-is­há) e fun­da­men­tar a mo­no­ga­mia. En­tre­tan­to, es­ta com­pre­en­são que em si de­ve­ria evi­tar a dis­cri­mi­na­ção da mu­lher, aca­bou por re­for­çá-la. A an­te­rio­ri­da­de de Adão e a for­ma­ção a par­tir de sua cos­te­la foi in­ter­pre­ta­da co­mo su­pe­ri­o­ri­da­de mas­cu­li­na.

O re­la­to da que­da é mais con­tun­den­te­men­te an­ti-fe­mi­nis­ta: “Viu, pois, a mu­lher que o fru­to da­que­la ár­vo­re era bom pa­ra co­mer..to­mou do fru­to e o co­meu; deu-o tam­bém a seu ma­ri­do e co­meu; ime­di­a­ta­men­te se lhes abri­ram os olhos e se de­ram con­ta de que es­ta­vam nus”(Gn 3,6-7).

O re­la­to quer etio­lo­gi­ca­men­te mos­trar que o mal es­tá do la­do da hu­ma­ni­da­de e não do la­do de Deus. Mas ar­ti­cu­la es­sa ideia de tal for­ma que trai o an­ti­fe­mi­nis­mo da cul­tu­ra vi­gen­te na­que­le tem­po. No fun­do in­ter­pre­ta­rá a mu­lher co­mo se­xo fra­co, por is­so ela caiu e se­du­ziu o ho­mem. Daí a ra­zão de sua sub­mis­são his­tó­ri­ca, ago­ra te­o­lo­gi­ca­men­te (ide­o­lo­gi­ca­men­te) jus­ti­fi­ca­da: “es­ta­rás sob o po­der de teu ma­ri­do e ele te do­mi­na­rá”(Gn 3,16). Eva se­rá pa­ra a cul­tu­ra pa­tri­ar­cal a gran­de se­du­to­ra e a fon­te do mal. No pró­xi­mo ar­ti­go ve­re­mos co­mo es­sa nar­ra­ti­va mas­cu­li­nis­ta dis­tor­ceu uma an­te­ri­or, fe­mi­nis­ta, pa­ra re­for­çar a su­pre­ma­cia do ho­mem..

Je­sus inau­gu­ra ou­tro ti­po de re­la­ção pa­ra com a mu­lher, o que ve­re­mos tam­bém pro­xi­ma­men­te.

 

(Le­o­nar­do Boff é te­ó­lo­go e fi­ló­so­fo e es­cre­veu O ros­to ma­ter­no de Deus, Vo­zes 2005)

 

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