Como se conhecem as pessoas
Redação DM
Publicado em 23 de fevereiro de 2018 às 23:16 | Atualizado há 7 anos
Dias atrás, aqui do meu apartamento, ouvi um tendepá esquisito na rua, em frente ao meu prédio, e, junto com toda a vizinhança que butucou a cara na janela, fomos ver o que era. Cá de cima, vi um grupo de quatro ou cinco homens sojigando um rapazinho franzino, que, àquela hora, já estava estendido na rua, de cara no chão, junto ao meio-fio, com um pesado sapato encalcando suas costas.
Como todo curioso, fiquei ali observando, e quando reconheci o delegado Waldir no meio deles, e sendo meu vizinho e conhecido, deliberei descer e encostar para assuntar de que se tratava.
Era um pivete, meio escurinho e franzino, que – dizendo eles – tinha afanado na porta do Restaurante Master Grill, aqui a um quarteirão de casa e onde costumo comer, um celular e parece que cinquenta reais de um menino que voltava da escola.
Os que o prenderam estavam no afinco de dar um corretivo no moleque, que disse morar em Aparecida de Goiânia.
Fiquei abismado com a atitude do pequeno larápio, quando ele, deitado e com a cara pregada no chão, a mando do delegado Waldir, de vez em quando levantava a cabeça, insultando todo mundo, numa confiança de quem já era escolado na marginalidade, vociferava:
– Não adianta chamar polícia, não, que se me levarem pra lá pra delegacia, logo vou sair e se um dia for condenado eu vou ficar é no semiaberto, porque eu sou de menor!
E insultou todo mundo o quanto pôde e xingava por quantos capetas tinha no inferno, até que a polícia chegou, com dois parrudos soldados, que o algemaram e levaram para uma não sei onde.
Durante aqueles momentos, enquanto a polícia não vinha, e eu, sem dizer quem eu era (pois nunca mostrei minha identidade de desembargador a ninguém nem dei “carteirada” em nenhuma “blitz”), escutei dos circunstantes que hoje em dia qualquer pessoa bem vestida e aparentando ser de boa situação, é uma potencial vítima dos descuidistas, batedores de carteira e carregadores de celular.
Acho que estou vacinado neste caso, pois ando, na diária, de bermudas e chinela de dedo, anônimo, não para desviar-me dos ladrões, mas por minha própria natureza, trafegando na rua livremente sem ser incomodado, botando um terno em ocasiões muito especiais. Quando preciso ir ao centro, pego o coletivo e livro-me de multas, pagar estacionamento ou mesmo abalroar ou ser abalroado, trazendo dor de cabeça. Toda semana vou ao “Diário da Manhã” ver os amigos, e tenho a sorte de meu ônibus 019 ter uma parada aqui dejunto de casa e o ponto final no terminal da Praça da Bíblia, a poucos metros do jornal.
Sempre adotei este estilo de vida, que nunca me trouxe dissabor, e esse meu jeito vem desde que era juiz em Taguatinga, quando, terminado o expediente forense, eu voltava à vida de cidadão comum, e continuei assim, depois de ser desembargador, e, mesmo como presidente do Tribunal, não era raro verem-me na feira livre comprando banana ou comendo pastel no meu velho estilo de andar anônimo, de bermudas e chinelos.
E, confesso, vivo uma vida muito tranquila, e até tenho pena daqueles que, depois de arranjarem um vernizinho de importância, teimam em viver entonados num terno e gravata, cercado de seguranças e dando “carteiradas”, cultivando o hábito da filosofia do “você sabe com quem está falando?”. Infelizmente, principalmente no Judiciário, onde às vezes falar com um magistrado é como tentar marcar uma audiência com o papa. Há raríssimas exceções, como meu colega Vanderley Caires, ali de Aparecida.
Conhece-se o povo é misturando-se com ele, e não fazendo-se pertencer a uma casta de importância postiça, pois no momento em que se despe de uma transitória situação, advêm a depressão e o sentimento de abandono, que acaba por relegar ao odiado anonimato que repeliam quando no poder. Quanto mais “importantes” mais deprimidos.
Graças a Deus, passei para a inatividade, mas continuo como sempre fui e essa tal depressão, que só conheço por ouvir dizer, nunca me deu preocupação.
Mas, voltando ao tema da autenticidade de comportamento, conheci por acaso o amigo Ronaldo Luiz, que vem me sempre me acudir nos reparos de vazamentos, instalações elétricas e outras dorezinhas de cabeça domésticas.
Depois de muito tempo, numa das vezes em que precisei de seus serviços, ele se desculpou, dizendo que naquele dia estava fazendo um “show” em Senador Canedo. Estranhei e depois entrei na internet, e no canal Youtube identifiquei-o: Ronaldo Luiz é um excelente guitarrista e cantor popular, por sinal requisitadíssimo por sua voz e seu repertório.
Conhecem-se as pessoas sem precisar que digam o que são, e passei a ter uma amizade mais estreita com ele.
Há poucos dias, tive um problema aqui com um vazamento de gás, e a sempre solícita síndica, D. Nayma, indicou-me um rapaz, chamado Carlos Henrique, que sempre vem prestando serviços ao condomínio.
Telefonei-lhe, e ele veio, fez o reparo e deixou-me um cartão com suas habilidades de um “faz-tudo”: consertos de fogão, refrigeração, máquina de lavar e outros reparos domésticos.
Outras vezes requisitei seus serviços, que, além de muito eficiente, é barateiro e muito atencioso. E na última vez, quando Carlos Henrique estacionou sua moto aqui na calçada e subiu, disse que teria que fazer num outro dia uma limpeza em meu fogão, pois no dia seguinte estava muito atarefado.
Curioso, mas sem querer ser indiscreto, comentei que ele devia ser muito requisitado, pois no dia seguinte não tinha achado um “encaixe” nos seus afazeres para me dar uma demão no meu serviço. Aí foi que me surpreendi, quando ele disse:
– Amanhã não posso vir, doutor, porque é o dia de minha formatura.
Pensei que se tratava de um curso técnico qualquer e disse-lhe:
– Que bom! Fico feliz, mas vai formar em quê?
Quase caí o queixo, quando ele, humilde como sempre, disse:
– Vou colar grau em Engenharia Civil nesta quinta.
Assim, fica mais uma vez provado que a simplicidade é que me encanta, pois talvez eu seja um dos poucos aqui em Goiânia que é atendido nos servicinhos de casa por um requisitado cantor popular, Ronaldo Luiz, e agora por um engenheiro civil, Dr. Carlos Henrique, cuja verdadeira identidade só descobri por acaso, pois ele nunca disse quem era.
Com isto, passei a admirar mais ainda esses dois amigos.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa – AGI e da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas – Abracrim, escritor, jurista, historiador e advogado,liberatopo[email protected])