A Justiça veio a cavalo – o emblemático caso Fernando Leiser
Diário da Manhã
Publicado em 13 de fevereiro de 2018 às 20:52 | Atualizado há 7 anosA distribuição de processos em um tribunal – qualquer que seja ele – é de suma importância, pois, sabendo-se da posição de um desembargador, pode-se direcionar o processo para aquele julgador; isto, sem se falar ser perfeitamente possível combinar com ele a concessão de uma liminar, em troca de favor, de tráfico de influência ou mesmo da deplorável compra e venda de decisões.
Em razão da gravidade de uma distribuição manipulada, o STJ recebera, em 2004, denúncia contra um desembargador federal do TRF da 3ª Região e afastara cinco servidores do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. E até publiquei na minha coluna “Judiciário” de 09/05/2004, no “Jornal do Tocantins”, uma nota sobre manipulação de distribuição de processos.
Na gestão Marco Villas Boas (2003/2005) no Tribunal de Justiça, tornou-se praxe atender aos interesses principalmente do Executivo, usando desse escuso expediente.
No longínquo 2004, a vez de ocupar a Presidência do Tribunal tocantinense era do desembargador Amado Cilton Rosa, o mais antigo na linha de sucessão de Marco Villas Boas, que, “coincidentemente”, tinha sido escolhido presidente, apesar de ter na sua frente quatro mais antigos, porque se fez uma ajeitadeira: os que eram mais antigos simplesmente renunciaram a concorrer (Dalva Magalhães, Willamara Leila e Daniel Negry), para evitar constrangimentos, e houve um fato que só ocorreu no Tocantins, quando a desembargadora Jacqueline Adorno de la Cruz Barbosa, com menos de dois meses de nomeada desembargadora, foi escolhida vice de Marco Villas Boas, como queria o Executivo.
Para suceder Marco Villas Boas, a vez era de Amado Cilton, um dos sete da primeira composição do Tribunal, em 1989. Mas ele, pela sua independência, era “persona non grata” do Palácio Araguaia. De fato, logo o sempre articulador do “siqueirismo”, desembargador José Maria das Neves, buscando “cavar” uma inelegibilidade para Amado Cilton, induziu a desembargadora Dalva Magalhães (que fora preterida por Villas Boas na eleição anterior) a ingressar em 29/11/2004 (uma segunda-feira) com o Mandado de Segurança (MS) nº 2.185/04, que tinha pressa na decisão liminar, pois no dia 02 de dezembro (a quinta-feira seguinte) seria a escolha do novo presidente, que substituiria Marco Villas Boas.
Como o interesse da cúpula do Executivo era dar continuidade ao “siqueirismo”, a escolha de Amado iria quebrar a corrente continuísta. Daí ter José Maria das Neves induzido Dalva Magalhães a impetrar o MS para obstar a escolha de Amado. Mas a ação mandamental poderia cair na relatoria de alguém não “confiável”.
Aí ocorreu um dos maiores absurdos do Tribunal: a distribuição dirigida de processos, que de há muito, vinha sendo discutida, inclusive por mim, que, através da minha coluna dominical “Judiciário”, no “Jornal do Tocantins”, levantara a questão, que se estendera ao Fórum de Palmas e de Colinas do Tocantins, onde passou a distribuição a ser dirigida.
E o feito foi distribuído, como queriam, para o desembargador José Maria das Neves, que induzira Dalva, o que garantiria a inelegibilidade de Amado, já que era certa a encomendada liminar.
A distribuição era comandada pela servidora Andréia Teixeira Marinho Barbosa, fiel escudeira de Marco Villas Boas, que fazia o seguinte: programava no computador que todos os desembargadores eram “impedidos”, à exceção daquele que queriam que fosse o relator. Assim, o computador sorteava: os “impedidos” iam sendo descartados, e a distribuição prosseguia até que se chegasse ao “escolhido”. E o absurdo foi tão grande, que, no sorteio do mandado de segurança de Dalva Magalhães, o computador fez nada menos que 92 (noventa e duas) tentativas, até que caísse no previamente escolhido, José Maria das Neves. E o fato foi flagrado pelo servidor Fernando Leiser Rosa, programador de informática.
E Villas Boas, quando foi para o TRE, como vice de Luiz Gadotti em 2005, levou Andréia como Secretária Judiciária do Eleitoral, onde continuou a arquitetar distribuições dirigidas, desta vez, a mando de Siqueira, para prejudicar seus adversários. Já que a escolha dos juízes do TRE/TO era feita pelo Palácio Araguaia, à exceção do juiz federal (que sempre era o solitário voto divergente nos processos de interesse político).
Quando surgiu o escândalo da distribuição desse Mandado de Segurança nº 2.185/04, o fato serviu para acharem um “bode expiatório”: o servidor Fernando Leiser Rosa, que descobrira a fraude e foi demitido. Foi dessa forma que o desembargador José Maria das Neves foi “sorteado” relator do mandado de segurança impetrado por Dalva Delfino Magalhães.
O fato – como disse – foi constatado pelo programador de informática Fernando Leiser Rosa, que, estando justamente acompanhando aquela distribuição, registrou e imprimiu as tentativas da “distribuição” fajuta.
Quando Fernando descobriu a farsa das distribuições, com as 92 tentativas de distribuição para que caísse na relatoria do desembargador José Maria das Neves, o então presidente do tribunal, desembargador Marco Villas Boas, chamou-o ao seu Gabinete e ameaçou-o de demiti-lo se divulgasse a tramoia.
Mas Fernando não se intimidou, e o presidente determinou a abertura do Processo Administrativo nº 34.833/2004, instituindo, pela Portaria 318/2004, uma Comissão Sindicante sob a Presidência do juiz Luiz Otávio de Queiroz Fraz (ex-Juiz Auxiliar de Marco Villas Boas, continuando como tal na administração Dalva Magalhães), começando o feito a tramitar em 13/12/2004. Como a gestão Villas Boas estava no final (Dalva, já eleita, assumiria em 31/01/2005), deixou a herança maldita para o servidor que descobrira toda a fraude. E com uma particularidade: inverteram-se os polos da questão: Villas Boas colocou Fernando Leiser como “hacker”, invertendo os papéis: de herói (por ter descoberto o crime), passou a acusado de ter invadido o sistema. Ora, se ele trabalhava na própria divisão de informática do Tribunal, não estava invadindo coisíssima nenhuma.
Isso, aliás, foi o estopim de uma discussão acalorada no Pleno na Sessão do dia 02/12/2004 (eleição de Dalva Magalhães), quando o desembargador Antônio Félix, rememorando o caso da distribuição cujo vício fora descoberto por Fernando, foi seguido pelo desembargador Amado Cilton, que acusaram o Presidente de patrocinar tal distribuição. Isto rendeu aos dois desembargadores (e também para mim, por ter sido solidário a eles, apesar de tio-afim de Villas Boas) a Representação nº 322-TO, assinada pelo desembargador José Maria das Neves, protocolizada em 23/02/2005, mas o subprocurador geral da República Eugênio José Guilherme de Aragão, após longa tramitação, exarou seu parecer, em cujo final pediu o arquivamento da Representação, o que se deu em 23/11/2009, por despacho do ministro Francisco Falcão.
O presidente da sindicância, juiz Luiz Otávio de Queiroz Fraz, indeferiu pedido de Fernando para ouvir testemunhas e juntar documentos e perícias.
Nesse ínterim, Fernando Leiser foi demitido administrativamente, “a bem do serviço público”, já na gestão Dalva Magalhães, pelo Decreto Judiciário nº 187/2005, publicado no DJ nº 1.344/2005. Voltávamos à Idade Média, em que os mensageiros de más notícias eram mortos pelo destinatário.
Aí, Fernando Leiser impetrou, em 29/03/2005, no Tribunal de Justiça o Mandado de Segurança nº 3.217, “distribuído” para o desembargador Luiz Gadotti, que, previsivelmente, negou a liminar. Mais de dois anos depois, em 19/05/2007, Gadotti entrou de férias, deixando já incluído na pauta o julgamento de mérito do referido MS. Foi substituído pelo juiz José Ribamar Mendes Júnior, que julgou extinto o mandado de segurança ao fundamento de que, com a conclusão do referido processo administrativo, que resultou na pena de demissão do recorrente, o “mandamus” teria perdido o seu objeto
Diante disso, através do advogado Ronaldo André Moretti Campos, Fernando bateu às portas do STJ, através do Recurso em Mandado de Segurança (RMS) nº 26.370-TO, que determinou que fosse apreciado o mérito do mandado de segurança, ou seja, reconheceu o cerceamento de defesa, em decisão unânime que seguiu o voto do relator, ministro Castro Meira.
Retornando do STJ, em 15/01/2010 foi encaminhado ao Gabinete do Relator, Luiz Gadotti, que ficou com os autos até 14/06/2011, quando foi incluído em pauta.
Nesse entremeio, o Relator, talvez para ganhar tempo por não saber o que fazer, mandou novamente os autos ao Ministério Público para emitir novo parecer. O Ministério Público, que já havia opinado pela concessão da ordem, manteve o parecer anterior.
No dia 11/07/2011, o processo entrou em pauta para julgamento, e, como da outra vez, o desembargador Gadotti, a exemplo do julgamento anterior, “tirou o corpo fora” e fez-se substituir pelo juiz Adonias Barbosa da Silva, que (naturalmente deixando pronto o voto), e, destoando do parecer ministerial, denegou definitivamente a segurança, no que foi seguido pelo desembargador Marco Villas Boas, como consta da ata.
Mais um absurdo aconteceu no processo: como Presidente, Marco Villas Boas mandara instaurar a sindicância para demitir Fernando Leiser, e quando deveria ter-se dado por suspeito ou impedido, também votou, somando mais um voto contra Fernando Leiser. Típica prevaricação, que merece ser apurada. O importante era Fernando perder a ação mandamental novamente, ensejando novo recurso ao STJ
Já no dia 23/10/2011, Fernando Leiser voltou ao STJ com o recurso Ordinário em Mandado de Segurança 3.217, para reverter a decisão do Tribunal, que lhe fora madrasta. No STJ tomou o número 39.948 e foi provido por decisão monocrática do relator, ministro Napoleão Nunes Maia Filho (pois o ministro Castro Meira se aposentara), no dia 20/06/2016, devolvendo o processo à Corte tocantinense para cumprimento do acórdão, uma vez transitado em julgado em 15/09/2016. O caso era tão evidente, que foi decidido monocraticamente.
E nesse ínterim, inexplicavelmente o desembargador Luiz Gadotti arquivou os autos sem cumprir a decisão, levando Fernando a requerer administrativamente a execução do acórdão do STJ, protocolizando o pedido em que requeria a anulação da decisão da Presidência que lhe aplicara a penalidade constante do Processo nº 04/0040084/7 (ADM 34833) e, por consequência, o Decreto Judiciário nº 187/2005, publicado no DJ nº 1344/2005, que o demitira, “a bem do serviço público”.
E após esse périplo de vaivéns TJ/STJ/TJ, finalmente um presidente sério, desembargador Eurípedes Lamounier, assinou o Decreto Judiciário 35/2018, do último dia 06 de fevereiro de 2018, em que declarou a nulidade do Processo Administrativo Disciplinar 34.833/2004, a partir da demissão de Fernando Leiser, determinando sua reintegração imediata, quase quinze anos após sua injusta demissão. O que, naturalmente, vai propiciar-lhe receber seus vencimentos atrasados de exemplar funcionário concursado.
Vamos ver se o prejudicadíssimo Fernando Leiser vai ficar calado, ou processar toda essa turma que o prejudicou, praticando o típico crime de prevaricação.
Por esse fato, o leitor pode concluir o porquê de eu ter respondido a 42 processos no CNJ/STJ e até ter sido afastado desde 2010, e aposentar-me sem penalidade alguma: nunca me curvei a falcatruas e sempre quis um Judiciário sério, mesmo pregando no deserto, e o leitor pode muito bem avaliar a carga que sofri, pois se em cima de um exemplar servidor fizeram isto, imaginem em cima de mim, que tinha um nome e poder de fogo para combatê-los?!
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa – AGI – e da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas – Abracrim, escritor, jurista, historiador e advogado. liberatopo[email protected])