Suado dinheirinho
Diário da Manhã
Publicado em 26 de janeiro de 2018 às 00:33 | Atualizado há 7 anos
O Niltão tinha uma horta grande na periferia de Jandaia. A produção dele abastecia os mercados e frutarias da cidade com legumes e verduras frescas. Alguns dos meus amigos, que jogavam futebol no time do Abacate, faturavam uns trocados trabalhando nas horas vagas. Eu precisava de grana. Não muita – apenas o bastante para tomar sorvete e comer um sanduíche com refrigerante aos sábados. Estava decidido: fui pedir emprego.
A horta pagava um pouco melhor que os outros trabalhos disponíveis para meninos. Naquele tempo, pré-Estatuto da Criança e do Adolescente, a gente podia descolar uns trampos sem aporrinhação legal. Era importante ganhar o próprio dinheiro. A gente se sentia quase adulto – exceto pelo fato de gastar parte dos trocados com balinhas ou bauru.
Não seria meu primeiro trampo. Eu era – e continuava firme no posto – office boy de uma escolinha. Tive uma breve passagem pela sorveteria do Antônio Ramos, que deixava a turma vender picolés nos carrinhos. Não foi um bom negócio para mim. Como Jandaia era muito quente, eu geralmente terminava o dia devendo ao patrão pelo consumo dos gelados – embora houvesse tolerância de dois palitos por turno. Não teria o mesmo problema com legumes.
– Seu Niltão, eu gostaria de trabalhar para o senhor.
– Não tenho vagas.
– Não precisa ser nada muito formal.
– Como assim?
– Faço como os outros meninos. Trabalho por dia. Quando houver safrinha, eu pego no pesado.
– Já trabalhou com horta antes?
– Não, senhor, mas aprendo rápido.
– Seu pai sabe que você quer vir para cá?
– Não, senhor. Eu quero ganhar meu próprio dinheiro.
O Niltão disse-me que pensaria a respeito. Ele era amigo de meu pai. Conhecia toda a minha família. Pensei nisso como vantagem. Sabia da minha procedência. Pelo menos, teria um peão honesto e limpinho, que xingava pouco, embora fosse molenga com serviço pesado. De qualquer maneira, eu tinha esperança. Até chegar em casa à noite.
– Soube que você procurou o Niltão hoje, meu filho.
– Verdade, meu pai.
– O que queria com ele?
– Emprego. Preciso ganhar dinheiro.
– Você precisa estudar. E muito. Sem conhecimento você vai terminar a vida como peão dos outros. Não vai ter autonomia nenhuma. A única chance que você terá na vida dependerá de seus estudos.
– Mas preciso de dinheiro.
Meu pai ponderou por alguns instantes. Parecia meio avoado até. Demonstrava preocupação com a possibilidade do trabalho me afastar dos livros, embora eu fosse um leitor voraz. Também parecia genuinamente orgulhoso ao perceber meu empenho em ganhar o próprio cascalho. Disse-me então para acordar bem cedo no outro dia. Afirmou que, se era meu intento trabalhar, seria para ele.
Trato firmado, pulei da cama antes do sol nascer. Era dia de vacinação do gado. Chovia. Coisas de novembro. Fomos à fazenda, onde as reses já estavam posicionadas para atravessar o tronco, onde seria imunizadas contra a aftosa. Eu, miúdo e desajeitado, tinha a ingrata tarefa de segurar o rabo e firmar o novilho para o Ratinho aplicar as doses. Também deveríamos marcar uns bezerros mais novos.
A chuva empesteava o chão do curral. Virou uma mistura de esterco com lama. Escorregadio, pregava em tudo. Isso não ajudava a firmar os novilhos. A seringa ou o marcador quente faziam os bichos darem coices. Tomei um nos peitos. Outros, mais sensíveis, evacuavam seus rejeitos quentinhos em meus braços e pernas. Ao final da manhã, cansado e fedido, estava arriado. Havia machucado a perna e cortado a mão. Meu pai, justo, pagou-me o mesmo valor dado aos peões – o equivalente hoje a R$ 40,00.
– Amanhã vamos vacinar de novo. Fique pronto.
– Pai, mudei de ideia.
– Não quer mais ganhar seu próprio dinheiro?
– Se o senhor não se importar, prefiro continuar nos livros…
(Victor Hugo Lopes é jornalista)