Crise nos presídios: quando a negligência ajuda a criminalidade
Diário da Manhã
Publicado em 16 de janeiro de 2018 às 22:21 | Atualizado há 7 anosNão tenho qualquer viés de esquerda. Acredito na capacidade individual do ser humano de progredir/evoluir e não creio que o Estado tenha condições de gerir nossos interesses de maneira melhor que nós próprios. Sou militar da reserva, filho e irmão de militar da reserva, e comandei, na ativa, o Destacamento Contraterrorismo do Exército. Estou convicto de que, entre a nossa vida, a de nossos filhos, netos, esposas, maridos, amigos, policiais, militares… e a dos bandidos, em confronto, que eles, os criminosos, morram (claro, com todas as excludentes de ilicitude ou de culpabilidade cabíveis a nos amparar). Acredito, também, que um pressuposto do encarceramento é que a vida de quem está livre deva ser melhor do que a do presidiário, o que a própria privação de liberdade, em certa medida, já proporciona. Ponto.
Nada nos parágrafos abaixo, assim, pretende adotar a perspectiva exclusiva do bem-estar do criminoso, mas da sociedade. Pelo nosso bem, precisamos encampar uma postura pragmática sobre o sistema prisional brasileiro. Explico.
Não temos pena de morte em tempo de paz ou de caráter perpétuo no Brasil e dificilmente as teremos no curto e no médio prazos. Obviamente, as mortes naturais, por doenças, rebeliões ou outros motivos quaisquer, ocorridas nos presídios, celebradas por uns, não reduzirão a população carcerária de maneira expressiva. O número de presos no País tem crescido absurdamente nas últimas décadas, a despeito desses fatores. Nos anos 1990, tínhamos algo próximo dos 100 mil encarcerados. Hoje, temos mais de 700 mil. Em alguns anos, teremos 1 milhão.
Quantas vagas o sistema suporta atualmente? Metade do número de encarcerados. Quantos são presos provisórios? Algo entre 40% e 50%. Gasta-se muito com a manutenção do preso sob custódia do Estado. Milhares de reais por indivíduo todos os meses.
Os Estados, por desinteresse político ou incompetência administrativa ou outra desculpa qualquer, não utilizam os recursos que a União lhes repassa para investir no sistema prisional. No segundo semestre de 2017, os Estados haviam executado apenas 1% dos R$ 1,2 bilhão do Fundo Penitenciário Nacional a eles repassados pela União para essa finalidade em fins do ano anterior. Em Goiás, nosso interesse imediato, segundo dados do Ministério da Justiça, apenas 18% dos quase R$ 32 milhões repassados para o Estado pela União em fins de 2016 foram efetivamente executados em 2017.
Medidas de desencarceramento, por sua vez, no atual quadro de segurança pública em que estamos inseridos me parecem piadas, de mal gosto. Nesse compasso, as audiências de custódia, também indesejadas por parcela considerável da magistratura, de modo especial, a de primeiro grau, reforçam a ideia de impunidade, execrada pela sociedade, que clama pelo aumento do rigor penal.
Somos, também, favoráveis a leis mais duras para criminosos, implicando penas maiores, mais rigor na progressão de regime, maior controle sobre os indultos, melhores índices de soluções de crimes, processos penais mais efetivos, investigações mais bem conduzidas, maior número de mandados de prisão cumpridos, tudo a reforçar a capacidade dissuasória da prevenção geral e diminuir os índices de delinquência.
Essas medidas todas, porém, no curto prazo, gerarão maior número de presos. Não me incomoda o crescimento momentâneo e circunstancial da população carcerária se ele estiver de acordo com as condenações ou decisões prolatadas pela Justiça, se isso não denotar piora no sistema prisional e se tal incremento for prenúncio de uma melhora geral nos índices de criminalidade no País e, por consequência, de alívio futuro na quantidade de pessoas mantidas sob custódia do Estado. O que precisamos evitar, assim, é que nossas prisões sejam, como o são atualmente, verdadeiras universidades do crime, em que bandidos saem potencial ou efetivamente mais perniciosos para a sociedade do que ao entrar.
Aí o pragmatismo que defendo. Não pelo bem exclusivo do criminoso, repito, mas pelo da sociedade como um todo. O combate à reincidência, por meio do aprimoramento do sistema prisional e a instituição de medidas efetivas de ressocialização, é de interesse de cada cidadão e não somente dos presos. São nossas famílias que ficarão mais expostas se a população carcerária crescer sem a devida alteração no sistema, mudança essa que barre a retroalimentação da criminalidade a partir das prisões brasileiras.
Precisamos, assim, (1) criar medidas que imponham aos Estados a aplicação integral no sistema prisional dos recursos repassados pela União, tratando o desinteresse ou a incompetência como crime de responsabilidade ou improbidade administrativa; (2) aumentar o número de vagas e reformar os lixões em que se transformaram as prisões no Brasil, não para conceder qualquer conforto aos presos, mas para lhes garantir condições de, quando chegada a hora inevitável de retorno ao convívio da sociedade, haja oportunidades para não delinquir, visando nosso próprio bem; (3) trabalhar pelo efetivo isolamento dos líderes de facções criminosas, para que o sistema não seja utilizado no estabelecimento da sua segurança, enquanto esses cabeças mantém suas ligações com o mundo exterior, comandando com absurda liberdade seus bandos de dentro das celas; (4) condicionar a progressão de regime ou outros benefícios penais ao trabalho efetivo em atividades que ajudem o desenvolvimento da região em que os presídios se encontram e que promovam, o máximo possível, condições para o exercício posterior de ofícios sustentáveis pelos futuros egressos; (5) aumentar o número de servidores dedicados ao sistema prisional; (6) criar um código de ressocialização efetivo e implementável, algo capaz de conceder aos presos alternativas para deixar a criminalidade e parar de ameaçar a sociedade com sua existência; (7) aumentar a coordenação entre União (Ministério da Defesa/Forças Armadas e Ministério da Justiça/Polícia Federal) e Estados (Secretarias de Segurança Pública e de Administração Prisional / Polícias Militares e Civis), com instituição de forças-tarefa reais e trabalhos contínuos, com sede física nos Estados; (8) coibir a tortura, prevenir as doenças, combater a violência sexual, desarticular rebeliões, separar presos por periculosidade, tudo com a intenção de conceder alguma chance de sucesso às medidas de ressocialização que nos protegerão no momento post cárcere; (9) criar medidas para que o Judiciário consiga gerenciar os processos criminais e a execução penal com maior eficiência, reduzindo o número de presos provisórios nas cadeias brasileiras e impedindo a permanência daqueles que cumpriram suas penas nos presídios, (10) adotar medidas reais que obriguem os presos a ressarcir o Erário pelos gastos com eles feitos, mantendo, ainda assim, chances efetivas de ressocialização, entre outras medidas.
Em resumo, há luz no fim do túnel, mas também muito o que fazer. Falta, em verdade, planejamento, firmeza e honestidade de propósitos e compromisso com a segurança da sociedade. Não há solução mágica ou receita de bolo. É preciso ter vontade política de agir, com ações legislativas, executivas e judiciárias.
(Vítor Hugo Almeida, major das Forças Especiais do Exército Brasileiro – reserva não remunerada – e advogado)