Pelo olhar do abismo
Redação DM
Publicado em 19 de novembro de 2017 às 05:32 | Atualizado há 8 anos
Era uma tarde de muito calor. Apesar disso, todas as janelas da casa foram fechadas, o que deixou o ar abafado. Tinha dificuldade para respirar, mas valia a pena. Eu já sabia o que ia acontecer em seguida: íamos brincar! Longe dos olhos de qualquer adulto, eu aguardava ansiosa por aquele momento. “Finalmente íamos nos divertir em paz”, pensava. Minha mãe havia acabado de sair e meu pai não voltaria tão cedo, pelo que me lembro.
Eu devia ter quase cinco anos. Estava empolgadíssima, pois havia esperado a manhã toda por aquele instante. Vestida com uma parte de uma camisola da minha mãe, aquela que se coloca por cima – negligê, eu acho. Nós íamos encenar um casamento e eu faria o papel de noiva. Como se via nos filmes daquela época, tínhamos que nos ajoelhar no chão. Para que nossos joelhos não se machucassem, havia um colchão na sala.
Nós mesmas cantamos a marcha que se toca nas igrejas, na entrada da noiva. No altar, à minha espera, no papel de noivo, a minha babá, de catorze anos. E então ela me beijou, o que eu não esperava. Nesse momento, senti me desligar do meu corpo. Como que por mágica, comecei a flutuar. Podia nos ver de cima e continuei sendo levada para o alto. Mas logo caí em mim: a babá pediu que eu ficasse sozinha no quarto, para que ela preparasse a sala pra nossa noite de núpcias. É isso mesmo: ela se casou comigo, com direito a beijo na boca e promessa de lua de mel.
Enquanto esperava, fui invadida por uma imensa solidão e tristeza. Quase chorei. “A babá não gostava tanto assim de mim”, foi a conclusão a que cheguei. No entanto, não pude me demorar nesse pensamento, pois minha mãe logo chegou e a babá foi afobada abrir as janelas, antes que a porta se abrisse. Uma vizinha havia avisado minha mãe de que a babá vivia fechando as janelas quando ficávamos a sós na casa. Nesse dia, minha mãe diz que tentou surpreendê-la, chegando mais cedo.
Essa mulher que morava ao nosso lado parecia desconfiar que alguma coisa errada estava acontecendo e creio que uma vez chegou a me perguntar o que tanto fazíamos na casa toda fechada. Era minha oportunidade de contar tudo pra essa prima da minha mãe, mas tive medo. E vergonha. Além do mais, a babá me fez prometer que não ia contar nada. Ao entrar em nosso lar aquele dia, minha mãe perguntou por que estava vestida daquele jeito e a babá se apressou em dar uma desculpa. Minha mãe disse que não devíamos mais brincar com suas roupas e foi para a cozinha.
Já eu, não conseguia olhar nos olhos de ninguém. Aquela foi a primeira vez que me senti muito mal em relação a mim mesma, porque pensava que não era amada. De repente, tudo me pareceu sem sentido e me vi envolvida numa trama de mágoa e segredo, brutalmente afastada de todos os que estavam à minha volta. O mundo ficou cinza. Nem o chocolate que ganhei depois, de nossa vizinha, teve graça para mim. Tanto que o comi mecanicamente, no desespero de voltar a me alegrar com coisas como essa. Talvez aí esteja a raiz de minha compulsão alimentar. Pois, a partir dali, eu perdi o gosto até pela comida.
E esse mal estar durou até a noite, de forma tão intensa que não queria dormir. Era uma criança e não queria mais viver. Desejava secretamente que pudesse deitar e não acordar mais. Não queria ter que passar por outro dia como aquele. Mais do que abandonada à própria sorte, fui traída. Infelizmente, esse sentimento se repetiu várias vezes na minha vida. Nos últimos tempos, creio que ele se amenizou, porém, não desapareceu por completo.
Só agora me dei conta de que não casei com a babá aquele dia, mas com um imenso vazio que jamais foi preenchido totalmente, talvez só pelas metades. Aliás, às vezes me questiono se alguém pode me amar do jeito que sou, depois de tudo que vivi. Com o tempo, passei a acreditar que nem meus pais gostavam de mim, pois não conseguia ver nenhuma qualidade a meu respeito. Além do mais, era o que a babá me dizia – “ninguém gosta de você, nem seus pais” ainda ecoa em minha cabeça –, porque não a obedecia e nem sempre queria brincar do jeito dela.
Desde então, parece que vivi meio sem rumo. Ficava pensando em como minha existência podia ser diferente se aquilo não tivesse acontecido. Depois vi que isso não me levava a lugar algum. E, para alcançar meu roteiro original, já frustrada de saber que isso não é possível, resolvi contar a minha história. A fim de me ajudar – e, quem sabe, outras pessoas – a trilhar um novo caminho, que nos permita viver de forma plena e feliz.
Quero comemorar 19 de novembro – Dia Mundial de Combate ao Abuso Sexual Infantil, com fogos de artifício, quando não mais tratarmos os menores de idade como meras mercadorias para desfrute dos adultos, sem direitos e vontade própria. E também quando deixarmos de ver os pedófilos como monstros e os enxergarmos como seres dignos de compaixão. Só através do seu perdão, podemos tratá-los com mais humanidade, mas sem isenção de sua culpa.
Já para encontrar de novo o meu caminho, procuro algo que me afaste cada vez mais do abismo que me contemplava. Uma forma de abandonar, precipício a baixo, a dor que carrego. Só assim, segundo a monja Cohen, vou poder abrir as mãos e fazer caber nelas todo o universo. Pois, como diria o poeta Carlos Drummond de Andrade, “Mundo, mundo, vasto mundo / Se eu me chamasse Raimundo / Seria uma rima, não seria uma solução / Mundo, mundo, vasto mundo / Mais vasto é meu coração”.
(Silmara B. Alencar, jornalista (silmara.b.alen[email protected]))