Mãe queima filho de dois anos na fogueira em Goiás
Diário da Manhã
Publicado em 4 de julho de 2017 às 03:55 | Atualizado há 8 anos
Aconteceu na cidade goiana de Piranhas, há poucos dias atrás, há uma entrevista da mãe no YouTube. A mãe alegou vários motivos para jogar o filho em uma fogueira e impedi-lo de sair de lá com um pedaço de pau : “não gostava dele porque o pai dele a havia abandonado”, “não gostava dele porque parecia com o pai”, “era muito birrento”, “no dia ele avançou em mim, deu birra, gritos, tapas”, “fiquei cega de raiva”, “estava muito angustiada, chorando, naquele dia, não estava boa”, “estou muito sufocada de ficar só em casa, sentido-me presa, só cuidando de problemas”. Quando foi explicar para a polícia como foi seu dia , entrou em detalhes estranhamente irrelevantes, limitadas cognitivamente, tal como “eu fiquei limpando uns pés de maracujá”, etc.
Na minha análise abaixo não vou falar desse caso em particular, pois não sou médico dessa mãe, não a examinei, não dou diagnóstico dela. Vou fazer uma análise em geral desse tipo de comportamento, em circunstâncias e personalidades relativamente análogas, tendo como base minha experiência e conhecimento pregresso em psiquiatria criminal ( forense ).
1/ Quando se trata de filicídio ( assassinato do filho ) de crianças muito pequenas, bebês, geralmente há um episódio psiquiátrico puerperal ( depressão ou psicose pós-parto ) envolvido. O instinto maternal é algo muito biológico, com base hormonal ( p.ex., oxitocina ) , forte, importante, pregnante, e, para anulá-lo, geralmente, só uma doença igualmente grave.
2/ Muitas mães que não desenvolvem psicose puerperal franca, ou depressão pós-parto franca, desenvolveu uma forma mitigada de doença psiquiátrica, chamada “post-partum blues”, e muitas dessas mães não conseguem desenvolver um vínculo precoce com seus filhos. Na maioria dos casos essas mães revertem esses sentimentos negativos para com a criança, mas , outras, poderão ter, no futuro, algum grau de indisposição, desconforto, estranheza, ou mesmo hostilidade, com suas crianças. É como se aquela “impregnação hormonal precoce”, chamado pela etologia de “imprinting”, não tenha acontecido de forma adequada e aí a mãe deixa de desenvolver aquele forte vínculo com seu filho.
3/ Mães que já tenham algum transtorno psiquiátrico prévio, mesmo que leve e não-aparente, até então latente, podem ser mais propensas a desenvolverem esse tipo de problema. Por exemplo, mães que tenham alguma tendência depressiva, bipolar, hiperativa, psicopática, delirante, esquizofrênica, epiléptica, cérebro-lesional, oligofrênica, toxicomaníaca, alcoolista, autística.
4/ Por exemplo, uma mãe que tenha alguma doença cérebro-lesional, ou oligofrenia ( espécie de retardamento mental/ problemas cognitivos ) , ou epilepsia, etc, poderá ter menos recursos cerebrais para lidar com problemas existenciais complexos. Tem um repertório limitado de atitudes, tem uma envergadura existencial limitada, reações explosivas, impulsivas, impacientes, irritabilidade patológica. Têm um foco existencial muito limitado, não sabem lidar com situações-limites. Por exemplo, uma mãe com dificuldades cognitivas, “presa em casa com um punhado de meninos custosos”, alcoolizada , drogada ( as vezes mesmo por substâncias lícitas ) , ou sob efeito de substâncias psicoativas quaisquer, pode vir a ter manifesta uma tenacidade afetiva, uma explosividade emocional, decorrentes de uma irritabilidade patológica de fundo orgânico. A isso pode vir assentar-se um problema afetivo outro, tal como depressão, ansiedade, aí a coisa fica bem pior. É comum, por exemplo, ter-se pacientes com oligofrenia e doença bipolar, todas essas patologias juntas e com uma mesma causa, a chamada causa “neurodesenvolvimental” ( que é quando uma mãe bipolar pode gestar uma criança com problemas ao mesmo tempo de natureza cérebro-lesional e afetiva-bipolar, tudo junto ).
5/ Há manifestações psiquiátricas de cunho afetivo que não são propriamente depressivas ou ansiosas, é a chamada “disforia”, um tipo de irritabilidade com maior ou menor grau de distimia ( “mau-humor patológico”). Muitos pacientes, que têm um baixo nível de determinadas substâncias neuroquímicas (5HT, norepinefrina, sigma, endorfinas, neuropeptídeos, sigma, etc) podem vir a desenvolver um tipo de “depressão sem depressão”, apenas com sintomas de agressividade e irritabilidade. Essa irritabilidade pode manifestar-se na forma de um transtorno de controle de impulsos, do tipo explosivo intermitente. A pessoa se diz “cega de raiva”, “eu não vi nada depois”, etc.
6/ Mães com problemas psiquiátricos biológicos podem repassar geneticamente comportamentos patológicos aos filhos, de modo a gerar uma situação de “tempestade perfeita” : uma mãe patologicamente irritada e uma criança patologicamente hiperativa, opositiva, desafiante, distímica, agressiva, desobediente. Se a mãe, além de doente, teve os problemas de desvinculação pós-parto que eu descrevi acima, as coisas pioram, pois a criança sentir-se-á também psicologicamente e afetivamente rejeitada pela mãe, e aí piorará seu comportamento, num ciclo vicioso difícil de romper.
7/ Aos fatores biológicos apontados acima podem vir ajuntar-se problemas de ordem familiar, econômica, social, psicológica, tal como pobreza, falta de recursos adequados para a família e filhos, abandono ou abuso afetivo, sensação de solidão, incapacidade, sobrecarga, “estresse”, excesso de trabalho, excesso de preocupação, divórcio, solteirice, brigas ou desvinculações passionais. Essa mãe, por exemplo, refere que “tinha raiva do filho porque via nele a figura do ex-companheiro abandônico dela”.
Como relatado acima, esses sete itens referem-se a conjunturas gerais do filicício/infanticídio e não propriamente sobre esse caso divulgado pela imprensa.
8/ pode-se notar que a mãe dá uma “série de explicações” para o crime, e quando acontece isso é porque a pessoa não “sabe bem o porquê fez o que fez”. Explicações demais indicam que nenhuma é eficaz e só roçam a superfície. Profundamente, é possível que causas afetivas e cerebrais impeçam a própria mãe de entender bem a insensatez do próprio ato.
(Marcelo Caixeta, médico psiquiatra ( hospitalasmi[email protected] ), especialista em psiquiatria criminal ( forense). Escreve no Diário da Manhã, Goiânia, ( acesso livre em impresso.dm.com.br ) as terças, quintas, sextas, domingos)