Coroico, descida que dá vida
Redação DM
Publicado em 28 de junho de 2017 às 00:21 | Atualizado há 8 anos
Já passavam das três da tarde e La Paz e o almoço ficou para trás. Acima dos quatro mil metros de altitude, é necessária adaptação progressiva. E os dez dias pedalando em volta do Lago Titicaca, nos havia proporcionado isso. Agora com o enorme 4×4 estacionado em La Cumbre, a rotina de descer, checar os pneus, freios, roupas, comida, água e tudo o mais, tornara-se medular. Automático. Vento ampliava o frio local. Afinal 4.600 metros não é pouco.
Mas Coroico a nossa frente era desafiador. No longínquo ano de 2001, onde mountain bike ainda não era modismo e bicicletas de suspensão full uma raridade, tudo parecia ser mais aventuroso e sublime. Vestimos os casacos corta-ventos e combinamos que a imensa Nissan Patrol nos encontraria lá embaixo. Sessenta quilômetros de pedra, precipício, neblina, curvas e sei lá mais o quê.
Se a altitude já dispara o coração, ali vendo a esposa rezar dentro do carro, a grande amiga Sel também e o heroico Fernando dirigindo, só restou juntar-me aos meus grandes mestres de aventura: Bruno e Pezinho. E descer com fé e pé de vela na horizontal.
Emocionado com a velocidade – no meu cateye a marca era de 88 km/h – e utilizando tudo que aprendi com Bruno esses anos todos de pedal, eu vibrava a cada curva e descida íngreme. Porém minha emoção e inabilidade para extremos se mostrou rapidamente. Furei dois pneus seguidos. Freava demais, frisando. Isso fragiliza a trajetória e favorece o trauma barométrico. Em suma: menos emoção e mais técnica.
Eles calmamente me explicaram tudo, deram sugestões, checaram meus antebraços (ainda bem que a natação estava em dia) e só aí vimos que o Fernando ficara para trás. A estrada era mais estreita do que imaginávamos, mais perigosa e na subida praticamente todos os caminhões vinham na contramão.
Saímos novamente e com muito gás, cabeça a mil e bicicleta a menos. Agora as curvas mais fechadas, derrapada controlada e de repente uma visão surreal. Aproveitando as térmicas, um gigantesco condor paira sobre nós. Tão próximo estava que dava para ver que se tratava de um exemplar masculino, devido à protuberância carnosa acima do bico. Ele, ao lado do Pezinho (que praticamente mede 2 metros de altura) fez com que meu amigo ficasse pequeno. Seu majestoso voo, seu olhar, suas penas longas, isso nos fez diminuir bastante a velocidade. E ele nos acompanhava solene em seu leve farfalhar.
Bruno sempre muito hábil, até que tentou segui-lo. Mas voar ainda não estava dentro de suas inúmeras qualidades ciclísticas. A temperatura começou a aumentar e aquilo que era pedra e despenhadeiro, agora era floresta luxuriante. Zunga.
E famosa estrada da morte nos tornava cada vez mais vivos e plenos. Uma parada para a tradicional foto numa curva de quase cento e oitenta graus. Os banhos de lama e poças vencidas facilmente e quiçá com a alegria do menino que brinca na chuva. Fomos descendo cada vez mais e a tarde morrendo nos paredões andinos.
Coroico se vislumbra cada vez mais próxima. O calor enche nosso peito e o ar rarefeito nos abandona de vez. Bem próximo à cidade um leve aclive. O que ressalta a velha frase de que toda pedalada que presta termina em subida.
Força desproporcional de quem passou duas semanas acima de quatro mil metros. Levantamos do banco para o sprint final. Camiseta aberta, bermuda seca, sapatilha trincando, casaco na mochila. Leves e felizes descemos quase que embriagados pela oferta de tanto ar e beleza.
Bem sei que a estrada era da morte. Mas em pouquíssimas oportunidades em minha vida me senti tão vivo assim.
(JB Alencastro, médico)