A engenhosa ponte submersa de Efraim Bandeira
Diário da Manhã
Publicado em 27 de junho de 2017 às 04:04 | Atualizado há 8 anosLá embaixo da serra, no sertão de Conceição do Tocantins, há um bando de córregos e riachos parecidos com os rios temporários, que, na seca, ficam esturricados a ponto de se poder fazer fogo no seu leito, e nas águas se transfiguram, virando até catástrofe, de tanta água. Lá pelos anos quarenta, o sertão foi palco de uma enchente tão medonha, que só quem conhece as manias de nossos córregos cheios de veneta é quem pode entender como a coisa muda.
A enchente daquela época foi tão violenta, que varreu fazendas, levou gado e gente, e semeou a destruição e o pânico numa extensa área, e até Conceição do Tocantins, tradicionalmente seca e abastecida na época por um mijinho de água, batizado de “Coxo”, viu água corrente nas ruas, vinda do córrego Carrapato, a duas léguas de lá.
O início dessa enchente foi até inacreditável, pois uns tropeiros, de vinda pro comércio, resolveram arranchar no leito do córrego Pindoba, onde desarrearem os animais, botaram os cargueiros abaixo e saíram caçando um porongozinho na areia fofa do leito pra cavar um poço de beber. Lá pelas tantas, horas mortas, ouviram um estrondo medonho que vinha das cabeceiras, e, quando menos esperaram, a água já vinha perto, lavando tudo numa fúria sem termo, que só tiveram tempo de puxar as cobertas e sair às carreiras pra não serem levados pelas águas. Tão de repente foi a chegada das águas, que, dali a minutos, quando a água lambia os beiços das ribanceiras, repararam que os companheiros estavam separados: uns estavam de um lado, e outros do outro, que nem tempo tiveram de sair juntos.
E assim são alguns dos córregos do sertão, como o São Martinho, o Mombó, o Pindoba, o Córrego dos Macacos, o ltaboca e outros, que, na época das chuvas, deixavam a gente horas e horas à espera de vau. Tropeiros e viajantes estavam cansos de dormir da banda de cá esperando a água vazar pra dar passagem. Comparo-os àqueles personagens Dr. Jeckyll e Mr. Hyde, de “O Médico e o Monstro”, que Robert Louis Stevenson celebrizou como clássico da literatura mundial.
Com estradas sendo rasgadas pra tudo quanto é lugar, aqueles córregos sempre foram empecilhos para o tráfego, pois era trabalho perdido fazer ponte: na seca, era uma beleza, mas quando o aguaceiro de novembro a fevereiro caía, a ponte ia embora na primeira cheia, por mais fornida e segura que fosse, levando-se em conta que nossa engenharia matuta não tinha os requintes técnicos de hoje, quando o Governo lá fincou pontes definitivas, que nenhuma cheia mais foi besta de arredar as bases de concreto e o vão de aroeira madura. Além de não conhecer a técnica de engenharia de pontes, a escassez do movimento nas estradas não compensava um rombo nas finanças municipais.
O córrego dos Macacos, ali nas confrontâncias da fazenda Brejo, município de Taipas, já levara várias pontes de aroeira e angico, desestimulando a construção de outras, apesar de ser passagem obrigatória para quem vai do Duro para Taipas, Conceição do Tocantins e Paranã, não permitindo desvio por outra passagem.
Foi aí que Efraim Bandeira, assumindo a prefeitura de Conceição, tratou de maquinar um meio de sanar o problema de ligar a cidadezinha ao seu fiei eleitorado de cabresto. E fez uma coisa inédita em termos de engenharia: quando o córrego estava seco, mandou construir uma passarela de cimento de um lado ao outro dos Macacos, com seus mais de trinta centímetros de altura, bem alicerçada de pedra-canga, com o cuidado de abaular e rampear o lado da nascente para que a água corresse livre. Durante a seca, os carros estavam escapos de atolar-se na areia seca e fofa; nas águas, a firme passarela permitia que se passasse, com a água ali pelos parafusos da roda, tornando possível, cômoda e segura a travessia. Não eram poucos os apertos de passageiros que, desconhecendo a ponte oculta sob as águas, botavam as mãos na cabeça quando o caminhão, com jeito de doido, peitava nas águas dos Macacos para sair do outro lado.
Durante coisa de dez anos trafegamos pela ponte, fruto da engenharia matuta, mas providencial, de Efraim, atestando o acerto de uma ideia que, de início, acharam maluca e motivo de galhofa ao prefeito, o qual, não obstante e com certa razão, colocava a “ponte” como uma de suas principais realizações.
Agora, com a construção da rodovia do Duro pra Conceição (que as más línguas andaram inventando que só fora feita porque o governador da época tinha fazenda por ali), o Governo tratou de sanar de uma vez por todas o problema, construindo uma alta e segura ponte, a poucos metros abaixo daquela original obra, de forma que, de cima da definitiva, a gente vê o que restou da outra.
Mas a passarela dos Macacos ficará ali como um monumento à engenharia improvisada e genial de Efraim Bandeira, única pessoa – que eu saiba – a construir uma ponte submersa, que, de resto, era o orgulho de sua administração.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado, liberatopo[email protected])