O Mensalão XIV – O destino bate à porta
Redação DM
Publicado em 23 de junho de 2017 às 22:01 | Atualizado há 8 anosPara Bastos, a acusação era ‘absolutamente desprovida de senso’, uma construção mental que não tem sentido, que não se sustenta’. E insistiu em que a acusação havia tomado como base o depoimento de uma testemunha ‘ocupante de um cargo de terceiro escalão dentro do banco’, que não passaria de uma falsária. Desqualificou a acusação de que o banco teria ganho 1 bilhão de Reais, ao afirmar que seria como ‘ganhar na loteria esportiva’, o que acabou mostrando certo desconhecimento do mundo real, pois essa loteria nem existe mais, – eis que foi substituída pela ‘timemania’, e os grandes prêmios são pagos pela Mega-Sena. Mas, deixando de lado o mundo dos jogos de azar, Bastos buscou um argumento frágil: O ‘fato de ser responsável por uma instituição financeira, não significa que seja responsável pelos delitos no âmbito dela’. E, tal como havia feito José Carlos Dias, no dia anterior, transferiu a responsabilidade para Dumont, o executivo falecido em 2004: ‘Todo o comando, cem por cento das operações estava nas mãos de José Augusto’. E como Dumont não podia se defender…
Bastos reiterou ainda diversas vezes que os empréstimos tinham sido pagos. Porém, contraditoriamente, afirmou que aqueles realizados pela SMP£B e Graffti não se haviam saldado, devido à grave situação das empresas, após a revelação do escândalo do ‘mensalão’. À época, portanto, sem atualização monetária, essa soma chegava a 29 milhões de Reais. No caso do PT, o empréstimo de 3 milhões teria sido ‘pago, com muita dificuldade,’ esquecendo-se de citar a data, quase uma década após terem sido contraídos. Foi caminhando, com certo enfado, para o final da sustentação. Disse que sua defesa era ‘fastidiosa’, e que, ‘para o bem de todos nós’, iria terminar. Não sem antes, claro, fazer uma citação de Rui Barbosa, que, na verdade, é de segunda mão, pois trata-se de uma passagem de Ésquilo: ‘Eu instituo este tribunal venerando, severo, incorruptível, guarda vigilante desta terra, através do sono de todos, e o anúncio aos cidadãos, para que, assim, seja de hoje pelo futuro adiante’. Convenhamos, a citação era vazia para o processo em tela. Inclusive, porque podia dar vezo a várias interpretações, como a passagem ‘eu instituo este tribunal’. Como é sabido, dos atuais 11 (onze) ministros, Bastos teve participação direta na nomeação de oito deles. ‘God’ (Deus, em Inglês) – como Bastos é carinhosamente chamado pelos seus discípulos (muitos deles atuantes neste processo), – sabe que em um julgamento com esse formato, as comparações são inevitáveis. Estavam presentes três gerações de advogados criminalistas. Alguns defensores se destacaram: outros, não. Uns ganharam; outros perderam. Ele perdeu.
Logo em seguida, a tribuna foi ocupada pelo advogado Maurício de Oliveira Campos Jr., defensor de Maurício Samarane, também dirigente do Banco Rural. Falou durante exatamente uma hora. Começou mal, com uma ode ao Regionalismo mineiro, ‘terra da liberdade’, e dissertou, brevissimamente, sobre as ‘características da mineiridade’. Melhorou, quando resolveu defender seu cliente. Calmo e didático, tentou, descaracterizar as quatro acusações contra seu cliente (as mesmas de Kátia Rabello e José Roberto Salgado). Expôs que o Banco realizou milhares de operações de crédito, e apenas três delas eram tratadas como gestão fraudulena, o que, convenhamos, não inocentava seu cliente. Insistiu que Samarane não era o gestor, portanto, não podia lhe serem imputada qualquer responsabilidade pelo ocorrido. Disse, – já era o terceiro a seguir esse caminho – que Kátia não tinha vocação para o posto, desde quando assumira a diretoria de ‘marketing’, e, como havia exposto José Carlos Dias, era uma artista, uma bailarina, não uma executiva financeira. Campos Júnior ainda agregou: ‘É uma mineira séria’. Porém, estava à frente do banco desde 2001, dois anos após a morte da sua irmã, Júnia, que teria sido preparada pelo pai para dirigir a instituição – Sabino, o pai, morrera em 2005.
O percurso da argumentação e a conclusão já eram conhecidos: José Augusto Dumont foi o responsável pelas operações. O azar de Samarane foi ter chegado na hora errada: “Todos os recém-chegados são arrastados pela conveniência do processo. Não que Dumont tivesse algo errado”. E os saques milionários nas agências do banco? Respondeu, o advogado: Não há um só saque que não tenha sido comunicado ao Banco Central. Não há um só. Todos foram comunicados”. Mas e a não identificação dos sacadores de quantias milionárias? O preenchimento é do próprio sacador”.
O advogado fez o possível para defender seu cliente, e teve um trabalho extra: Responder a uma indagação do Ministro Dias Toffoli. Era a primeira vez, no processo, em que um ministro fazia uma pergunta a um advogado de defesa, o que é permitido, regimentalmente: ‘Nesse período (o ministro fazia referência ao período da relação do Rural com Marcos Valério), o banco se socorreu de algum sistema tipo Fundo Garantidor de Crédito, ou algo assim? O advogado respondeu, objetivamente:
“Em uma das ocasiões especialmente críticas, o banco negociou parte de seus créditos junto ao Fundo Carantidor. Não obteve, por assim dizer, um favor. Socorreu-se, sim, do Fundo Garantidor. Todos os créditos foram performados. Estão nos autos, inclusive, os depoimentos referentes a tal assunto.
“Com a resposta rápida e elegante, o que causou maior estranheza foi o desconhecimento do ministro Toffoli, pois, como havia dito Campos Júnior, essas operações ‘estão nos autos’.
Antônio Carlos Mariz de Oliveira foi à tribuna às 16:25h. Em 49 minutos, buscou fazer uma defesa na linha dos outros advogados do ‘núcleo financeiro’. Sua cliente, Ayanna Tenório Torres de Jesus, de nada sabia. Diferentemente de outros réus, Ayanna está sendo acusada de dois crimes: Formação de quadrilha e gestão fraudulenta. Sua especialidade, segundo ele, é a área de recursos humanos, e jamais havia exercido ‘qualquer função relacionada ao mundo financeiro’. Ficou difícil compreender as razões que haviam levado o Banco Rural a designar tal funcionária para o setor de ‘compliance’, responsável pela verificação das regras internas, e pelo cumprimento dos procedimentos legais. Para isso, nenhum banco – e o Rural era um banco médio – nomearia uma funcionária que desconhecesse ‘o mundo das finanças’. Mariz encerrou afirmando que era ‘kafkiana a acusação contra ela’.
Depois de uma pausa de 30 minutos, que, na curiosa matemática do STF, foi de 47 minutos, retomaram-se os trabalhos. O defensor Alberto Toron ocupou a tribuna. Começou mal. Resolveu citar Oswald de Andrade. Como demonstração de erudição? Mas o que o célebre modernista teria com o mensalão? E com o mundo da Justiça?
Não foi um bom aluno da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Fez o curso em dez anos, o dobro do tempo normal. E odiou o curso ‘com seus lentes idiotas, seus velhos alunos cretinos, sua tradição de admirável atraso colonial, me provocava o mais justo dos desprezos’. O advogado citou um trecho do ‘Manifesto Antropofágico (de 1928), como espécie de epígrafe: ‘Perguntei a um homem o que era o Direito. E ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. (Comi-o)”. Toron omitiu uma passagem essencial, a do parênteses: Esse homem chamava-se Galli Mathias”. É um trocadilho criado pelo modernista com a palavra ‘galimatias’, que significa discurso verborrágico, esquisito, hermético, ininteligível, de acordo com o ‘Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa’. E Toron foi o Galli Mathias da sessão.
O Defensor abusou de uma linguagem gestual pesada, chegou até a bater palmas várias vezes. Comunicou que era candidato à presidência da OAB-SP, como se esse fosse um tema de relevância para aquele tribunal e, mais ainda, naquele momento. Fez várias referências às artes marciais, e pediu a concordância do Ministro Luiz Fux, conhecido por sua prática. Convenhamos, a busca de um clima de intimidade não era adequada àquela Corte, e a nenhuma outra. Talvez fosse uma estratégia armada pelo advogado.
Toron defendia o deputado petista João Paulo Cunha, acusado pela PGR de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e peculato. Não era tarefa fácil defendê-lo, pois, durante a CPMI dos Correios, sua mulher tinha ido a uma agência do Banco Rural, e sacado 50 mil Reais. Quinze dias depois, a SPM£B venceu uma concorrência na Câmara. João Paulo era o presidente da Casa. Pode ter sido uma coincidência, porém, no ano anterior, a mesma agência tinha sido desclassificada numa licitação. Desse contrato, João Paulo, segundo a PGR, desviou 252 mil Reais, pois teria obrigado a empresa de Marcos Valério a subcontratar uma empresa jornalística que já prestava serviços para ele. E também é acusado de ter desviado, do mesmo contrato, 536 mil Reais para Marcos Valério. O deputado chegou a se livrar de um processo de cassação, em 2006, quando foi derrotado no Conselho de Ética, mas venceu no plenário: Foram 256 votos pela absolvição, e 209 votos pela perda do mandato. Toron incorporou a tese já apresentada na segunda-feira, primeiro dia primeiro dia das Defesas, de que o dinheiro recebido, – os 50 mil Reais, – era do Caixa Dois do PT, e tinha sido destinado ao pagamento de pesquisas pré-eleitorais. E não teria origem em recursos públicos. Negou as outras acusações, como a de que a empresa IFT- ‘Ideias, Fatos e Textos, do jornalista Luiz Carlos Pinto trabalhasse para Cunha e não para a Câmara, como sustenta a PGR. Só fez uma concessão. Pode até ser que ele olhe olhava mais o presidente’. E concluiu sua intervenção às 19-horas
Se fosse possível sugerir uma citação, para encerrar a fala de Toron, poderia ser do próprio ‘Manifesto Antropofágico’: ‘Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós”.
A Corte já estava exausta. Não só ela. Qualquer um que estivesse assistindo àquela sessão, não agüentaria mais a linguagem rebuscada e vazia dos advogados, o latinório primário, os gestos aprendidos em algum cursinho, a dicção e seus falsetes de indignação, em suma, todos os recursos usados, habitualmente, em um tribunal do júri, então sendo repetidos em pleno STF.
Finalmente, às 16h01, Luis Justiniano de Arantes Fernando foi à tribuna defender Luiz Gushiken. A PGR, por falta de provas, pediu sua absolvição nas alegações finais. Mas a Defesa ‘pede mais. Pede que seja reconhecida a sua inocência’. E por mais meia hora apresentou sua argumentação. Em seguida, foi substituído por José Roberto Leal de Carvalho, que falou por mais meia hora, insistindo na mesma tese, de que não será um favor a absolvição, ‘ele busca o justo restabelecimento de sua honra’. Era, até o momento, o único réu com dois advogados em plenário, fazendo a sua defesa. A mistura de enfado e cansaço por fim havia contaminado o tribunal. Até o presidente Ayres Britto estava ausente do Plenário, quando terminou a intervenção de Leal de Carvalho. Quem encerrou a sessão foi o Ministro Joaquim Barbosa. Dos três dias, tinha sido o único em que os advogados haviam usado todo o tempo estipulado pela Defesa. Daí a extensão da sessão.
(Licínio Barbosa, advogado criminalista, professor emérito da UFG, professor titular da PUC-Goiás, membro titular do IAB-Instituto dos Advogados Brasileiros-Rio/RJ, e do IHGG-Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, membro efetivo da Academia Goiana de Letras, Cadeira 35 – E-mail liciniobarbo[email protected])