Condenar e punir ou reeducar e ressocializar – X
Redação DM
Publicado em 22 de junho de 2017 às 22:51 | Atualizado há 8 anos
Os artigos anteriores trataram de assuntos relacionados à corrupção. Existe a corrupção do “jeitinho” e a corrupção do “jeitão” brasileiro, aquela praticada pelos descolarizados e esta, pelos letrados de nível superior. A rotina dos prisioneiros da Lava Jato, constituída de pessoas de nível universitário, cujas penas estão sendo cumpridas em Curitiba, foi descrita no artigo anterior, sem maiores problemas para os apenados a não ser a cassação da liberdade. Não é o que se visualiza nas demais prisões pelo Brasil do cidadão comum, sem ou com baixa escolaridade. Trata-se, neste artigo, da situação das penitenciárias brasileiras, repletas de criminosos analfabetos ou de baixa escolarização.
Michel Foucauld (1926-1984), em seu livro Vigiar e punir, discorre sobre o caminho histórico percorrido pela punição: 1) suplício, ou violência contra o corpo do condenado; 2) punição, com trabalhos forçados; 3) disciplina com vigilância, a forma moderna de punição. Mas a forma de punição ao transgressor mudou no decorrer do tempo, dependendo da forma de governo e da estrutura socioeconômica da sociedade. Na antiguidade não existia a noção de prisão que temos hoje no que se diz respeito tanto a sua finalidade como ao ambiente prisional. Os indivíduos, privados de liberdade, eram amontoados nos chamados cárceres, como eram designadas as masmorras, torres, calabouços ou castelos, onde aguardavam a pena que, de uma forma geral, caracterizava-se por torturas, maus tratos e até mesmo a morte. Apenas por volta do século XIX, a pena privativa de liberdade se tornou a principal forma de punição (corrigir o criminoso), e foi assim que surgiu a preocupação com as condições de locais e de ambiente, que satisfizessem o objetivo de fazer com que homens e mulheres cumprissem suas penas. Com o passar dos anos, baseados em ideais iluministas, na Declaração dos Direitos, e no Código Penal de 1890, aos poucos buscou-se melhorar a situação das prisões.
As péssimas condições do Sistema Prisional brasileiro, porém, testemunham que os objetivos da melhoria estão longe de serem alcançados. Ainda hoje, há quem pensa que o doente mais grave deve ser enviado para o hospital, o louco para o hospício, o crimi-noso para a cadeia. A tendência da sociedade é de aumentar a punição para os crimino-sos. Ouve-se com frequência, frases como: “o lugar de criminoso é na cadeia…” “bandi-do bom é bandido morto…” etc.
Dois fatos abalaram a sociedade brasileira no início deste ano: a decapitação de 56 presos (do PCC) no presídio Anísio Jobim, Manaus, AM (abrigava 1.800 presos para 580 vagas) e a decapitação e esquartejamento de 33 presos na penitenciária estadual de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte (abrigava 1.150 presos para 620 vagas).
A seguir, uma rápida exposição da discussão e possíveis encaminhamentos para os maiores problemas do sistema carcerário brasileiro:
1 Superlotação dos presídios – O povo, os políticos e os agentes de segurança apoiam o projeto “Segurança Zero”, que consiste em otimizar a retirada os meliantes das ruas e jogá-los nas cadeias. Os presídios brasileiros são mal construídos tornando-se apenas depósitos de “marginalizados” da sociedade. No Brasil, nem o Estado sabe quantos presos, hoje, estão nas cadeias. Os dados de 2014, mostram que havia 622 mil detentos para 371 mil vagas (carência de 251.000 vagas). Se a população brasileira, nos últimos 10 anos, cresceu 72%, o número de vagas nas prisões cresceu 10%. Na verdade, a maioria das cadeias são lugares de armazenamento de gente, que se desumaniza, pois não oferece as mínimas condições para sua reabilitação. Joga-se o ser humano na cadeia como alguém que deve sofrer por que causou mal ou prejuízo a outrem, pois o sistema carcerário, como está estruturado, não oferece as mínimas condições para recuperação do preso, mas, ao contrário, contribui para torna-lo pior. E quando as pessoas são tratadas de forma desumana reagem de forma violenta. Se a situação se complica dentro do presídio, envia-se Força de Segurança e até o Exército para reprimir. Por isso não basta pensar em aumentar vagas nas cadeias, como depósito de criminosos sem enfrentar os problemas da Segurança Pública e do próprio Judiciário. É preciso repensar todo o processo que vai desde a prisão do criminoso até a sua recuperação e reinserção na sociedade. Em síntese, o Estado brasileiro anuncia ao mundo que está prendendo cada vez mais, mas de que adianta, se não oferece condições de recuperação ao seu detento?
2 Saúde precária dos prisioneiros – Em geral, os presos, condenados ou não, em sua maioria são jogados nas mesmas celas, ou seja, o simples ladrão de pão na esquina, ainda não julgado, é jogado no mesmo espaço com o usuário dependente de drogas, o portador de HIV, o tuberculoso. O ambiente promíscuo no presídio, em geral, é insalubre e, não poucas vezes, com assistência médica precária. Tudo isso contribui para gerar um ambiente propício à revolta e ao aumento das organizações criminosas.
3 Mistura de presos com penas (crimes) diferentes – Prendem-se e colocam-se nos mesmos locais autores de crimes contra a vida, crimes sexuais graves, assaltantes e traficantes de drogas. Os novos detentos são coagidos a se aliarem às facções em troca de proteção. Assim, o presídio se torna uma “fábrica de crises” e uma “escola de criminosos”. Aproximadamente, 40% da população carcerária é composta de pessoas não condenadas. Ninguém nasce propenso ao crime. Pessoas que hoje se encontram na situação de presidiários, tiveram em algum momento seus direitos fundamentais violados e, na maioria das vezes, tal situação lhes trouxe algum tipo de revolta. Por outro lado, se a cadeia deve ser lugar de reabilitação, não deveria ter gente que aguarda julgamento. Mais, há presos que já cumpriram pena e ainda não foram soltos.
4 Ociosidade e maus tratos – Um provérbio popular diz que “a ociosidade é a mãe de todos os vícios”, ou seja, a falta de ocupação para as pessoas de baixa escolaridade é ambiente propício para desencadear nelas, não o arrependimento dos delitos cometidos, mas a revolta contra membros da Segurança Pública, juízes e agentes carcerários. Além disso, nas cadeias brasileiras os presos são maltratados: com spray de pimenta, bombas, balas de borracha, golpes e chutes pelos funcionários. A comida é insuficiente, a iluminação muitas vezes é precária. Esta situação acaba por revelar um verdadeiro “sistema de vingança”, fazendo o que muitos acreditam que essa “justiça” seja a forma mais concreta de ação para punir o criminoso, quando na verdade acaba sendo afronta a sua dignidade. Deste modo, a partir da visão do cidadão comum, o sistema penitenciário deve ofertar um mínimo de suporte aos condenados, pois o sofrimento não deve ser a pagamento pelos crimes que cometeram. No Brasil, quando os criminosos tornam-se presidiários, perdem a sua humanidade.
5 Facções criminosas – As facções criminosas destacam-se na luta pelo controle de drogas, revelam a força desses grupos que dominam cadeias brasileiras e tendem a expandir suas desavenças e atos de crueldade para as ruas. O Primeiro Comando da Capital (PCC), com aproximadamente 22 mil filiados, tem integrantes ou apoiadores em 22 Estados brasileiros. Novas organizações, mais violentas, estão surgindo nos presídios do país para fazer frente ao PCC. No Amazonas, especialmente na região de Manaus, surgiu a Família do Norte, que já matou vários membros do PCC e foi isolada. No Rio de Janeiro destaca-se a facção Comando Vermelho (CV), com aproximadamente 16 mil filiados, em São Paulo, facções regionais disputam a liderança do crime dentro e fora das prisões. Na região metropolitana de Belém, no Pará, a queda de braço está sendo travada por duas facções cujos apelidos simbolizam o histórico conflito entre americanos e terroristas que gravitavam em torno de Bin Laden: a Al Qaeda e Estados Unidos. O PCC encontra mais dificuldades para entrar no sistema penal do Rio Grande do Sul, mas tam-bém lá encontrou adeptos, especialmente no Presídio Central de Porto Alegre, o de maior concentração do país, com 4.800 detentos. O domínio da massa carcerária gaúcha na região metropolitana da capital pertence, entretanto, a três novas facções: Os Manos, Os Brasas e Os Balas na Cara. Em Salvador, surgiu uma organização com cara baiana: Comando da Paz. Uma em cada três unidades prisionais do país separa seus presos por facção criminosa. A motivação principal para a ação é um tipo de ideologia onde o inimigo é o Estado violador dos direitos do preso. Essas facções não se combatem apenas com apreensão de drogas ou bloqueio dos bens de seus integrantes. A proliferação de facções reflete o fracasso do modelo prisional brasileiro, baseado, na concentração de detentos em grandes presídios das regiões metropolitanas e no encarceramento em massa priorizando modalidades ligadas aos crimes contra o patrimônio. Hoje, as facções criminosas assemelham-se ao modo empresarial e comandam ações dentro e fora dos presídios.
6 Má administração – O Estado revela-se incompetente na administração da maioria das penitenciárias brasileiras, sendo que, em cinco estados, as cadeias são administradas por empresas privadas. O Estado só age quando há rebelião, apenas para suprimi-la. Assim, a violência dos presos (revoltados) é suprimida pela violência das forças repressoras de segurança. Mas não se discute sobre as causas da violência. A maioria dos agentes das penitenciárias não foram treinados adequadamente. E violência gera mais revolta e mais violência. Vários especialistas concordam que o grande culpado pelo crescimento do crime organizado são os vazios deixados pelo Estado. A criminalidade prospera graças às brechas abertas pela corrupção e pela desproteção policial. Há um déficit de 120 mil agentes, prevendo 10 presos/agente. Hoje são 200 presos/agente.
Dados oficiais
Segundo o Ministério da Justiça havia no Brasil, em 2014, 622.202 presos. Os dados demonstram que a maioria dos crimes foi cometida contra a pessoa (homicídios e sequestros), contra o patrimônio (roubos, furtos e latrocínios) e por tráfico de drogas; 61,6% são negros (pretos e pardos); cerca de 40% dos detentos são presos provisórios (aguardam julgamento). Dessa população encarcerada infere-se que há um índice de 300 presos para cada 100 mil habitantes; com isso o Brasil continua sendo o quarto país com maior número absoluto de detentos no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, China e Rússia. Porém, enquanto esses países têm reduzido suas taxas de encarceramento nos últimos anos, o Brasil segue em trajetória oposta, aumentando sua população prisional em 7% ao ano, em média. O grosso da população carcerária é formada por uma juventude entre 18 e 29 anos. A maioria dos presos não completou o ensino fundamental (um em cada três presos). De norte a sul do país há problemas de superlotação, ineficiência do Judiciário, que demora para julgar os casos (aproximadamente 40% ainda esperam julgamento). No Brasil, cabe a cada Estado promover suas Políticas Prisional e de Segurança Pública.
Alguns dados sobre a população carcerária feminina, em 2013: 36.135 mulheres estavam presas no Brasil; 22.666 era a capacidade do sistema, portanto, 13.469 em superlotação; dessas, 8% eram jovens entre 18 e 34 anos, 61% negras e pardas, 62% analfabetas; 647 estavam presas em locais inadequados, como delegacias e cadeias públicas; 95% da encarceradas sofriam algum tipo de violência dentro das prisões; 60% não tinham parceiro em relação estável; 60% respondiam por tráfico de drogas; 6% respondiam por crimes violentos contra pessoas; 345 crianças viviam no sistema penitenciário brasileiro (filhas de mães prisioneiras); 4 a 8 anos era a média das penas cumpridas. Não houve rebeliões nas 80 penitenciárias femininas em 2013. Como se vê, o tratamento das mulheres prisioneiras não é diferente do dos homens.
Criar um novo modelo de penitenciária, baseado no princípio da reeducação – É necessário lembrar que preso também têm direitos; que prender por vingança ou para simplesmente isolar o criminoso da sociedade não pode mais ser aceito numa sociedade democrática. Está provado que o aumento do número de presos não diminui a crimina-lidade da sociedade. Conclui-se, portanto, que não adianta construir mais presídios, mas criar estratégias para diminuir a população carcerária. As penitenciárias devem servir como meios de reabilitação e de ressocialização, para que os detentos percebam que a prisão pode se transformar num meio para alcançar uma função social. Eis alguns en-caminhamentos que deveriam ser discutidos:
recenceamento periódico para saber das reais condições dos presos, tais como, saúde, escolaridade, alimentação, relação com familiares, condições sanitárias, comportamento, tipo e duração das penas, assistência religiosa, projetos de educação formal e profissional, assistência jurídica, acompanhamento do apenado em cumprimento de regime aberto;
soltura imediata dos presos que já cumpriram penas;
a Justiça deve cuidar para diminuir a duração das penas, realizar julgamentos mais rápidos e aplicar mais penas alternativas (por exemplo, prisão domiciliar, prestação de serviços comunitários) para crimes de menor gravidade, ou seja, nem todos os meliantes devem ser encarcerados;
na cadeia, o preso deve ter direito à alimentação sadia, assistência médica, banho de sol, cela limpa;
o comportamento do preso deve ser avaliado periodicamente;
os presos em liberdade condicional, devem ser acompanhados, para que evitem a reincidência;
a presença de educadores, psiquiatras, psicólogos e agentes sociais nas cadeias brasileiras deveria ser rotineira;
os agentes penitenciários devem ser treinados adequadamente;
os presos provisórios devem ser separados dos presos condenados por crimes graves e dos presos que integram fações criminosas;
reeducação é mais importante que punição, por isso é necessário implantar nos presídios a educação formal: educação fundamental e ensino médio e superior (lembra-se que há Educação a distância); educação profissionalizante: como jardineiro, padeiro, encanador; a cadeia deveria ter espaços para a profissionalização dos presos e estar conectada com empresas que poderão oferecer trabalho a presos em formação profissional e após a sua libertação.
é necessário desenvolver uma política de ressocialização do preso, como, assistência ao egresso: material, saúde, jurídica, educacional, social; prever uma tabela de remissão da pena a cada atividade (estudo ou trabalho) desenvolvido pelo preso.
o desenvolvimento espiritual dos presos pode ter a contribuição de pastorais carcerárias credenciadas, cujos resultados já foram comprovados.
Ressalve-se que os casos de presos perigosos, como, assassinos de crimes hediondos, líderes de facções criminosas devem ser trancafiados em Penitenciárias de Segurança Máxima, diuturnamente monitoradas.
Referências
BARROS, Ana Maria; JORDÃO, Maria Perpétua D. A cidadania e o sistema penitenciário brasileiro. Justributário. Unieducar. Educação em Distância. Disponível em: https://www.ufpe.br/ppgdh/images/documentos/anamb2.pdf. Acesso em 10/abr./2017.
CAMARGO, Virgínia. Realidade do sistema prisional no Brasil. Âmbito Jurídico. Recife: Universidade Federal de Pernambuco. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=1299. Acesso em 03/abr./2017.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. Tradução de: Surveiller et punir.
GAVINHO, Júlio. Recuperar ou punir. Diário da Manhã. Goiânia: 28/jan./2017.
VASCONCELOS, Emerson D. Santos de; QUEIROZ, Ruth F. de Figueiroa; CALIXTO, Gerlânia A. de Medeiros. A precariedade do sistema penitenciário brasileiro: violação dos direitos humanos. Âmbito Jurídico. Rio grande, XIV, n. 92, set. 2011. Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/?artigo_id=10363&n_link=revista_artigos_leitura. Acesso em 05 abr. 2017.
(Darcy Cordeiro, mestre e livre docente, professor aposentado da PUC-Goiás e Universidade Estadual de Goiás)