Cultura

Fantasma que assombrou Cannes foi expulso no final do festival

Redacão

Publicado em 17 de junho de 2017 às 21:28 | Atualizado há 4 meses

Durante dez dias de filmes, centenas de eventos paralelos, festas, caras e bocas e vestidos de estrelas e desfiles de astros, e de alguns vencedores anunciados na noite de domingo, um fantasma foi o grande personagem do Festival de Cannes. Ele assombrou o evento antes e durante. Ele poderia ser o vilão de um filme chamado «O fantasma da morte das salas de cinema». Mas ao final do Festival ele foi vencido mais uma vez.

Ainda antes do evento, o fato da comissão ter selecionado filme produzido pela Netflix, que não seria lançado em salas de cinemas, mas diretamente aos  assinantes daquele canal, ofuscou até os anúncios da lista de filmes, do júri e do presidente do festival. E uma das últimas entrevistas de  figura carimbada do Festival,  o resistente Roman Polanski, repercutiu pelo destaque dado à sua resposta defensiva diante de uma pergunta, quando ele disse acreditar que «as salas de cinema não estão ameaçadas ».

Na Champs Elysées, que franceses elegeram como « mais bonita avenida do mundo », uma das alegrias dos cinemaníacos era atravessar um de seus principais pontos onde nos dois lados existam conjuntos de salas de cinema até alguns meses atrás. Hoje quem for tentar a experiência vai encontrar em um dos lados uma grande loja de sapatos substituindo filas, pipocas e filmes. Poderia ser a prova final de que o fantasma do fim das salas de cinema não estava apenas no Festival de Cannes. Mas…

FANTASMA VAI TER TRABALHO

Assim como o Festival de Cannes nasceu cancelado (sua primeira edição não aconteceu e somente veio a acontecer depois de uma II Grande Guerra), o cinema já nasceu desprezado e condenado pelos “especialistas”. Um deles, ao assistir uma das sessões pioneiras promovidas pelos inventores do cinema em Lyon (França), irmãos Lumière, vaticinou : «não acredito que alguém possa  interessar-se em pagar para assistir uma coisa dessa ». Era um tempo em que a primeira atriz internacional, a francesa Sarah Bernhardt, atraía platéias em teatros do mundo civilizado interpretando “A Dama das Camélias”, inclusive no Rio de Janeiro e São Paulo.

Poucos anos anos depois o cinema tornou-se o carro chefe para vender  produtos das maiores potências do planeta. Se alguém usa calça jeans ou camiseta, se alguém fumou cigarro, ou  tomou coca-cola, coloque a culpa no cinema. Meus pais certamente começaram a namorar em uma sala de cinema. Os aparelhos de TV ainda não eram popularizados, internet não existia nem em sonho, e teatro não tinha a «trancendentalidade» de um filme que chegava mesmo às cidades mais isoladas. No Século do Cinema Sarah Bernhardt deixou de existir, o teatro continuou existindo apenas nos grandes centros como atividade profissional e como atividade amadora em todo lugar do mundo onde alguém representa um texto ao vivo para outras pessoas.

Em seu livro « Disrupção Limpa em Energia e Transporte», o professor Tony Seba lembra que «se o mundo acabar, a última frase será de um especialista dizendo que não, isto não vai ser possível”. Nesta mesma obra, ele prevê que em menos de quinze anos a era do petróleo chega ao fim e as energias limpas vão dominar o mundo. Ele lembra que a era das carruagens acabou não porque os cavalos desapareceram, mas porque uma nova tecnologia superior apareceu, a dos carros movidos a petróleo. E assim foi antes, quando a era das pedras lascadas também acabou, não porque as pedras acabaram, mas pelo fato de que novas tecnologias superiores foram surgindo. O mesmo aconteceu com o fim dos filmes fotográficos, substituídos pela fotografia digital.

Mas falta surgir ainda uma tecnologia superior ao cinema, pois a sétima arte é ao mesmo tempo a energia que a move mas também o produto oferecido em forma do conteúdo criado e vendido por ela.



“Assim como o Festival de Cannes nasceu cancelado (sua primeira edição não aconteceu e somente veio a acontecer depois de uma II Grande Guerra), o cinema já nasceu desprezado e condenado pelos ‘especialistas’”.

Onde estaria a tecnologia superior surgida para substituir o cinema em salas? Na era da internet e da comunicação fugaz, veloz, instantânea e descartável, à conta-gotas, de emails, twittes, mensagens no facebook, seria possível encontrar algo que se compare e que tenha a capacidade de enfrentar um filme em sala de cinema? Apenas os espíritos mais vazios dos grandes centros ou eremitas de ilhas isoladas poderiam acreditar que apareceu um formato com conteúdo mais atraente do que um filme.

A Netflix é apenas uma extensão adaptada de uma tecnologia que surgiu também há quase sete décadas, a da Televisão e seus aparelhos espalhados por todo o mundo. A televisão sim, com seu formato tradicional, está acabando antes do cinema, quando muitos acreditavam que ela é que iria enterrar a sétima arte.

Todo o mês de abril, no Forum des Images, um palácio com diversas salas, instalado no Chatelet, coração de Paris, um festival coloca no devido lugar o fantasma das séries de TV. Durante o festival «Série Mania», elas é que disputam o público para lançarem suas novidades em um espaço onde as pessoas acorrem justamente para assistir às obras em «tela grande», junto às pessoas diferentes, ou seja, em salas de cinema.

O cinema já cansou de fazer filmes sobre  suas crises e mudanças de tecnologias, entre os quais clássicos como «Cantando na Chuva» e «Cinema Paradiso», dentre outros. Houve até quem acreditasse, na época do cinema mudo, que o cinema falado iria… matar o cinema.

O fato que fica do fantasma que assombrou Cannes é que a Netflix tem apenas que enquadrar-se nas regras ditadas pelos capitães da indústria cinematográfica se quiser participar dos festivais: exibir seus lançamentos em salas. Ninguém vai perder com isto, nem ela, nem seus assinantes, nem o público, nem as salas. Simples.

DICAS AOS FANTASMAS

Para matar as salas de cinemas, o fantasma de um novo formato tem que se virar para preencher alguns requisitos próprios da sétima arte: alquimia, transcendentalidade, mitologia. Não vai ser fácil.

A alquimia está em que nenhum outro formato de arte, tecnologia ou seja lá o que for, concentra tanta diversidade criativa quanto o cinema, que junta em uma obra a sinergia de literatura, teatro, fotografia, pintura, música, dança, escultura, cenário, indo do mais simples entretenimento ao mais importante registro histórico, da comédia leve esquecida meia hora depois à epopéia de gerações e civilizações.

“Na Champs Elysées, que franceses elegeram como « mais bonita avenida do mundo », uma das alegrias dos cinemaníacos era atravessar um de seus principais pontos onde nos dois lados existam conjuntos de salas de cinema até alguns meses atrás”.

Transcender é  elevar-se acima do vulgar, se superar, ir além de ou ultrapassar alguma coisa. Está relacionado com pensamentos e emoções, e é a capacidade de se transpor barreiras, se tornando superior a algumas circunstâncias, diferenciando de forma positiva, atingindo patamar superior em determinado contexto. O cinema tem transcendido desde que nasceu. Inventou mil e umas para sobreviver. Ultrapassa fronteiras e o tempo.

A mitologia pode ser resumida no fato de que nenhum outro setor da vida humana conseguiu criar e ter como referências tantos mitos como o cinema. A mais importante apresentadora de TV dos EUA quase foi expulsa de uma loja de bolsas na Europa. Completamente desconhecida na outra metade do primeiro mundo. Se fosse uma atriz de segundo escalão do cinema americano, talvez tivesse sido mais reconhecida e respeitada. Os 70 anos do Festival de Cannes lembrou o mito Claudia Cardinalle em seu cartaz e consagrou outra mito, Nikole Kidman, em seus prêmios. A sétima arte continua a enriquecer sua mitologia.

“A Netflix é apenas uma extensão adaptada de uma tecnologia que surgiu também há quase sete décadas, a da Televisão e seus aparelhos espalhados por todo o mundo. A televisão sim, com seu formato tradicional, está acabando antes do cinema, quando muitos acreditavam que ela é que iria enterrar a sétima arte”.

Entre os premiados em sua edição de 70 anos, Cannes consagrou o filme francês “120 battements par minute”, de Robin Campillo, que apresenta uma crônica dos anos da epidemia de Aids em Paris. “Uma aventura coletiva. Nunca somos tão belos e fortes do que quando estamos unidos”, declarou o cineasta ao receber o prêmio. Já o prêmio de Melhor Interpretação Masculina foi para o ator americano Joaquin Phoenix,  em “You Were Never Really Here”, da britânica Lynne Ramsay. O ator impressiona como  veterano da Guerra do Vietnã que tem que resgatar um adolescente de rede de prostituição. A alemã Diane Kruger recebeu o prêmio de Melhor Interpretação Feminina por seu papel em “In the fade”, do diretor Fatih Akin. A ex-modelo vive uma mãe de família que busca se vingar da morte de seu marido, de origem turca, e de seu filho, em atentado cometido por neonazistas. Haja conteúdo!

Mãos à obras. Os fantasmas vão ter muito trabalho. E as salas vão continuar a abrir ou fechar suas portas. Muitas fechando por falta de público onde a decadência é marcada por igrejas fast foods, pelos «espetáculos» da máfia do futebol ou até prosaicas lojas de sapatos. Outras porém continuam abrindo onde os grandes centros comerciais precisam de âncoras para atrair consumidores para suas outras lojas.

 [box title=”Mas como foi expulso afinal o fantasma do festival?”]

Simples mas significativo e vital como um truque de  índios. As fotos do diretor sueco Ruben Ostlund, que ocupou as primeiras páginas nos principais jornais do mundo, com sua alegria de criança por ganhar a Palma de Ouro para o seu bebê, o filme “The Square”. Os jurados, incluindo desde astros vulgarizados como Will Smith até representantes da Coréia, Espanha e da França, descobriram uma pepita sueca, que será assistida por milhões de pessoas interessadas em saber por qual motivo ela despertou a atenção e os votos do Festival. As fotos da alegria espontânea do diretor sueco, que conclamou a platéia à comemorar com ele, tiveram a força de uma dança de índios para celebrar a vitória em uma guerra. E espantaram o fantasma mais uma vez.

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Sara Silva é jornalista, designer, crítica de cinema e mora em San Francisco, na Califórnia, onde já atuou na indústria gráfica por vários anos. É natural de Goiânia

Macilon Neto é o autor desta cobertura fotográfica.  É especialista em cobertura de grandes eventos internacionais e atua com foco na indústria cinematográfica. Ele publica suas imagens no website: www.mmsnetto.com ou através de suas conta de Instagram e facebook com o nickname: mmsnettophotography. Ele é natural de Goiânia
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