Opinião

Personagens improváveis (II)

Diário da Manhã

Publicado em 30 de maio de 2017 às 01:34 | Atualizado há 8 anos

No imaginário popular, é figura carimbada a do matuto com jeito de coitado, mas que de bobo não tem nada. Pelo contrário: com esperteza e astúcia, consegue passar para traz sabichões enfatuados, gente importante e bem de vida. Não têm conta historinhas, piadas, programas na mídia, desafios de violeiros e que tais versando sobre o tema – ou seja, o esperto ganhando do esforçado e estudado.

De certa forma, o ex-presidente Lula encaixa-se nesse perfil, tendo-o agora algo esmaecido por hábitos de consumo refinados, como a degustação de vinhos caríssimos e, claro, mordomias no sítio do amigo. Nas últimas semanas, contudo, o caipira esperto voltou à tona, desta vez provocando tsunamis na política e na economia.

Não é difícil imaginar a cena: na sala do Palácio do Jaburu – residência oficial do presidente – o empertigado Michel Temer recebe Joesley Batista, um dos donos da JBS, a megaempresa de proteínas, alçada a campeã mundial com financiamentos públicos bilionários dos governos petistas. Conversam a sós, na noite brasiliense. O primeiro mandatário da República, como sempre contido e formal, tem as feições congeladas em máscara inexpressiva, as mãos eventualmente esboçando gestos perfunctórios. Joesley, à vontade, vai levando a conversa para os assuntos pré-escolhidos, em clima de confiança, quase de confidência.

Ele chegou ao presidente sem despertar suspeita, nem passar por qualquer revista dos chamados órgãos de segurança institucional, que são muitos. Alguma autoridade teria dispensado previamente tal cuidado? Trouxe consigo dois gravadores baratinhos para registrar cada frase, cada entonação vocal do diálogo que dura mais de meia hora.

O clima é descontraído, mas nem tanto. Depois de muita insistência, Temer concordara em receber o interlocutor. A entrevista segue, com Joesley falando e falando em linguagem tosca, repetitiva, às vezes difícil de entender. Ele se preparou: a finalidade imediata é comprometer o presidente e, paralelamente, detonar centenas de políticos, aqueles a quem a JBS e outras empresas da holding doaram dinheiro ao longo dos anos. Melhor dizendo: de quem Joesley e comparsas compraram privilégios, financiamentos, enriquecimento, enfim.

Muito se tem escrito, em tom de gozação, sobre a dupla caipira – Wesley & Joesley – vinda lá dos confins de Goiás, como um imenso rodamoinho varrendo a moderníssima Brasília.  Levando consigo folhas secas, poeira, lixo, garrafas pet, plásticos, eventualmente arrancando arbustos e até árvores à sua passagem. Em tom de gozação, fala-se das origens dessa família: com os quatro irmãos e o pai, açougueiro em Anápolis na distante década de 1950, a história dos Batista lembra antigas sagas de pioneiros do bravio centro oeste – em parte domesticado, mas não amansado de todo.

A verdade sobre a JBS e caterva mistura ousadia, determinação, tino para negócios e absoluta falta de escrúpulos: vale tudo para ganhar! E ali está o caipirão Joesley enrolando o presidente da República que se refugia em meias palavras – às vezes nem tão evasivas quanto deveriam ser.

Antes de ser recebido, o megaempresário já providenciara a mudança da mulher e dos filhos para os Estados Unidos, no Gulfstream Aeroespace da firma; já transferira a maior parte dos negócios do grupo para o exterior; já fechara acordo de delação premiada para livrar-se de processos em curso e de eventuais ordem e prisão. Como joia da coroa, mandara também o iate de 30 milhões de dólares, que, da Marina Itajaí, em Santa Catarina, seguira a bordo de um navio para Miami. Nome do brinquedo: “Why not” – ou seja: Por que não?  Diz tudo!

E a conversa segue na noite brasiliense. Apertos de mão certamente houve entre o roceiro e o gentleman, gestos de cortesia formal. “É preciso continuar com isso” – diz Temer sobre o alegado bom relacionamento de Joesley com o ex-deputado Eduardo Cunha. O que foi divulgado com estridência, como sendo apoio explícito do presidente à milionária propina que seria paga pelos irmãos “Esleys” ao ex-deputado federal do Rio de Janeiro.

E Michel Miguel Elias Temer Lulia – doutor em Direito Público, professor de Direito Constitucional, autor de livros consagrados na área jurídica, político tarimbado, congressista e líder do PMDB há décadas, presidente da República Federativa do Brasil – somente soube da esparrela em que caíra depois que os caipirões estavam longe, com a liberdade assegurada e a bombástica delação premiada gravada e divulgada. Inclusive relacionando os 1829 beneficiados (Temer inclusive) com propinas da JBS…

 

(Lena Castello Branco,[email protected])


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