Opinião

Dois dias na história de minha mãe

Diário da Manhã

Publicado em 14 de maio de 2017 às 02:13 | Atualizado há 8 anos

O tempo bocejou, esticou os braços pras bandas da Fazenda  Samambaia, e dormiu. Sonhou. O sonho cutucou suas lembranças.  Era um final de semana especial do mês de outubro. O terreiro, o jardim, a horta, regados por mãos de duas meninas irradiantes, Liquinha e Sonia, e pelos chuviscos dos céus emocionados. Em um sábado, a mágica e iluminada Fazenda, preparava-se para receber costumeiras visitas das famílias do vovô Israel e dos tios Otávio e Lindolfo. Era um final de semana especial.

Cedinho, ao romper do dia, os lá de casa, todos de pé.  Meio à sonolência dos bezerros, no curral próximo ao paiol, meio ao canto dos galos, aos sorrisos cristalinos dos peões e agregados, ao companheirismo da madrinha Geralda, cada um e cada uma com sua tarefa de espera: tirar o leite, desnatar, cuidar dos animais, fazer a limpeza da casa e arredores, assar biscoitos no forno de barro, fazer doces nos tachos de cobre, arear as panelas, para o preparo das galinhas caipiras, do arroz, do tutu, da guariroba, dos legumes e hortaliças; realizar a limpeza da casa e dos arredores: deixar brilhando as largas e enormes tábuas dos cômodos de cima, limpar a poeira dos móveis e lavar os utensílios.

Havia uma escada, também de tábuas, de três degraus, que descia em direção à cozinha e ao quarto de meus pais. Descendo mais dois degraus de alvenaria, dava-se acesso a dois outros quartos, o das meninas e o dos meninos. Todos os pisos dos cômodos do segundo e terceiro planos eram de tijolos à vista, devendo estar rigorosamente limpos. No plano inferior da casa, havia uma apetitosa dispensa, também de assoalho, onde, cheios de fartura, ficavam a queijeira, o cachão de açúcar de forma, as prateleiras, o moinho de café e uma janela, por onde entrava o cheiro e a magia do quintal. As garrafas de pinga de engenho, nas prateleiras, junto aos vidros cuidadosamente preparados por minha mãe: de jurubeba, pimenta bode e cumari, de vinagre e licores. Esses vidros de conserva eram expostos, junto às garrafas de mel, extraído das grandes moradas, pelo inesquecível Seu João Domingo.

Quando o número de visitantes era grande, a jovem Leolina, minha querida mãe, criativa administradora do lar, estendia no piso da copa e da sala muitas camas para os de casa. Os colchões eram de palha. Os catres dos quatro quartos, de cima e de baixo, com colchões fofos pelas ternas mãos de minha mãe, eram decorados por seus artísticos repasses de algodão e lã e por seus alegres bordados: com todo respeito, nesse dia as camas especiais pertenciam às visitas. O trabalho de artesanato de minha mãe e o seu dinamismo no desempenho de funções diversificadas, relacionadas ao fogão, ao forno de barro, ao algodão, à mandioca, ao milho, ao leite, à carne, tudo foi aprendizagem com vovó Cassiana, sua esperta e trabalhadora mãe. Toda aprendizagem passava de mãe para filha, assim como os ofícios masculinos passavam de pai para filho. A cama de meus pais era de arame e, nessa época, já aconchegava um urbano coxoado de capim que nunca era ocupado por outras pessoas.

O café era colhido em ritmo de festa, com trovinhas improvisadas e cantadas por agregados e membros da família, de todas as idades. A festa era colorida. A agropecuária de grande porte e o trabalho comunitário tinham a liderança de meu pai. A cantoria era iniciativa de meu pai e das tias Luzia e Terezinha. A tia e madrinha Geralda assessorava a cozinha e a lavagem de roupa na bica d’água. Havia no quintal, misturados ao jabuticabal e às bananeiras, centenas de pés de café carregados. Depois das várias fases de preparação, o café em coco, sequinho, se agasalhava nas sacas e nas tuias, para ser socado no pilão do monjolo. Ficava na casa do monjolo a fornalha de pedra, onde a Dinha, minha avó paterna, torrava a farinha.  Nesse dia, a obrigação de varrer a moinha do café pilado e as cinzas do forno de farinha era do Seu João Domingos, peão querido em nossa fazenda. Meu avô Antônio Luiz preparava, com carinho, lenha branca para as fornalhas e o forno de barro de sua nora.

Meu elegante e animado pai, às seis horas da manhã, usando botas e uma calça de couro cáqui, contrastando com um paletó branco de linhão cento e vinte, lenço de seda floral ao pescoço, rumara para a cidade de Orizona, a cavalo; sua sela era entiotada por coxonilho branco e pelego vermelho, capa ideal na garupa e uma pinhola no pulso direito. A ida à rua tinha um objetivo especial: comprar vinho moscatel para as visitas, e um corte de tecido cor-de-rosa, como presente para minha mãe. Afinal, era dia do aniversário da patroa. Às nove horas, Seu Joaquim já de volta, próximo à porteira do Trabanda, soltava foguetes para festejar os visitantes e a aniversariante. Dona Leolina, a homenageada, sorriso de candura, suave e terna, aplaudia, agradecendo a homenagem. Era jovem, bonita, singela, modesta, dinâmica e estava feliz.

_Eram funções das meninas e meninos as tarefas de limpeza e decoração: Liquinha, Sônia, Iva, Israel e Joel, com exceção da Sílvia, pequenina, e do Josélio, bebê que dormia numa inesquecível rede de madeira, presa por sedenho aos caibros do telhado da cozinha. (Vera, Ferreira, Rita de Cássia, Malena, Sandra Regina e Sara nasceram na cidade, posteriormente). Talvez, apenas a Liquinha, a primogênita, e eu nos lembremos dessa inteligente e democrática divisão de tarefas, feita por Dª. Leolina. _Os papas da divisão racional de trabalho, Taylor e Faiol, precisavam conhecer essa grande mulher. Cristo aplaudiu o amor, com que ela regeu a sua orquestra.

_Parabéns ás mães de nossa família, a todas as mães do mundo!

 

(Sonia Ferreira, escritora, presidente do Centro de Cultura da Região Centro-Oeste/CECULCO e membro da Associação Nacional de Escritores/ANE/DF. Pertence a diversas instituições culturais de Goiás E-mail:[email protected])

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