Opinião

Originalidade capenga

Diário da Manhã

Publicado em 12 de maio de 2017 às 21:33 | Atualizado há 8 anos

Certa feita, Carmo Bernardes contava um causo escutado na rua, como original, e depois de muito tempo lia a mesma coisa num clássico da literatura mundial, parece que Mark Twain. E manifestava o nosso cronista sua frustração em reproduzir o fato como original. Daí, andar muito vasqueiro com essas histórias de acreditar na originalidade de certos episódios, contados como em primeira mão e, no final, descobrir que são novidades de cabelos brancos.

O povo que conhece a gente que escreve em jornal tem uma pontazinha de vaidade em ver seus causos reproduzidos, se possível com a citação de quem  contou.  Coisa de autoafirmação.  E às vezes a gente embarca numa canoa sem remo ao sabor da corredeira.

Quando morava em Belo Horizonte, estive no MEC, em Brasília, onde um senhor de Cai-Cai, goiano de Trindade, até muito bonzinho, mas desses cheios de novidades, divertia os colegas de repartição com suas histórias originais.  E, diante de tanta coisa que ele dizia ter presenciado ou mesmo ter ouvido dizer que ocorreu com um parente, um amigo ou coisa, passei a espiá-lo com um pé fincado no chão e outro na desconfiança.

Ele contava causos de pescaria, de caçada de bicho que ria pros caçadores, de visagens e até de coisas corriqueiras, para deleite dos colegas, e eu no meio.

Meu sobrinho Filon e minha ex-cunhada Telva, um dia, chamaram Cai-Cai e pediram pr’ele contar uns causos, que eu escrevia num jornal lá de Belo Horizonte e às vezes alguma coisa podia ter interesse numa futura crônica.

De início, ele ficou relutante, mas depois parece que se transformou num boneco daqueles que a gente dá corda e não quer parar mais.  E lá vem coisa: só faltou Cai-Cai dizer que tinha pegado carona em disco voador, que de assombração arriba e abaixo ele deu notícia de tudo.

Dentre as inúmeras histórias, que me consumiram bons pares de horas só bebendo cafezinho nas costas do Governo, ele me contou uma que teve sua dose de humorismo e originalidade. Ele disse lá onde aconteceu e deu até o nome do pessoal personagem do inusitado episódio, morador aí pelas bandas de Trindade, se não me trai a memória.

Morrera um fazendeiro e mandaram um caminhão à rua buscar o caixão.  De volta, o cai¬xão no meio da carroceria, toparam com um saco-às-costas que ia de a pé na mesma direção.  Este abanou a mão pedindo uma ponga.  Acederam, e o homem subiu. O carro tocou pra frente.  Daí a pouco, começou a chover, e o carona, desaper¬cebido de um agasalho, não achou mal nenhum aboletar-se dentro do caixão forrado de veludo, até que a chuva parasse.

Mais diante, dois outros bateram a mão pedindo carona, e o caminhão parou.  Subiram, e tocaram pra diante, debaixo de uma chuvinha fina de molhar tolo. Viram aquele caixão, mas não deram ligança, pois sabiam da morte do fazendeiro e até iam pro enterro.

Quando o peneirar do chuvisco cessou de tamborilar no caixão, o que estava dentro, alheio ao mundo – como alheios estavam os outros dois da presença de alguém dentro do esquife – le¬vantou a tampa e, vendo aqueles dois sentados na grade da carro¬ceria, indagou:

– A chuva já parou?

Não conto nada.

Foi mesmo que soltar o Capeta em cima do caminhão: os dois com o susto, saltaram do caminhão, que ia às vinte, e se estrumbicaram na beira da estrada, que até a mucuta que levaram deixaram no veículo.  Cai-Cai não soube explicar se morreram ou se machucaram, pois as gar¬galhadas dos ouvintes taparam o fim da história.

Pois bem, escutei aquilo e botei na conta das histórias originais que me conta-ram.

Agora – vocês assuntem como são as coisas – estou lendo a Almanaque Sadol 83, quando vejo uma daquelas curiosidades que ilustrem esses almanaques. Sob o tí¬tulo “Defunto de Morte”, o almanaque conta:

Aconteceu em Burundi, na África: um motorista de caminhão transportava um caixão a 100 quilômetros de distância para enterrar nele um parente.

No percurso, seu ajudante resolveu tirar um cochilo, e para ficar mais confor-tável na traseira do caminhão, deitou-se no caixão macio, forrado de cetim.  Mais adiante, o motorista parou para dar carona a cinco viajantes.  Iam todos tranquilamente, quando o ajudante, acordando, levantou a tampa do caixão fazendo os passageiros saltarem apavorados, em pânico, para a morte”.

É o tal caso.  Se a gente vai confiar no que os outros contam, pode dar com os burros n’água.  O Carmo Bernardes, pelo menos, foi respaldado por Mark Twain.  E eu, que fiquei na base do Almanaque Sadol?

 

(Liberato Póvoa, Desembargador aposentado do TJ-TO, Membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, Membro da Associação Goiana de Imprensa – AGI -, escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])


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