Carlos Heitor Cony
Redação DM
Publicado em 26 de abril de 2017 às 21:51 | Atualizado há 8 anos
O movimento militar de março de 1964, que derrubou da Presidência da República o gaúcho João Belchior Marques Goulart, autodenominou-se Revolução de 1964, com a pretensão de instituir uma nova ordem política restaurar a moralidade no País. É verdade que parte expressiva da sociedade civil brasileira clamava por uma intervenção militar, temerosa das reformas de base anunciadas e defendidas pelas forças da esquerda política, das quais o Presidente vinha se aproximando. Logo se pode verificar que o que ocorrera, na verdade, foi uma quartelada, com o revezamento de generais no posto máximo da nação e a tentativa de fazer do povo brasileiro um rebanho de submissos, obedientes e disciplinados como se o País fosse um quartel. Muitos intelectuais se rebelaram, pagando com o exílio, a cassação, a aposentadoria e mesmo a prisão o atrevimento de criticar a ordem imposta pelos militares.
Nesse panorama de caça às bruxas e eliminação impiedosa dos opositores, inclusive daqueles que de início apoiaram o movimento, um intelectual carioca confrontou e afrontou o arbítrio. Escancarou as contradições, denunciou as injustiças, escarneceu das mentiras do regime e arriscou a própria pele ao levar a boca ao trombone para protestar contra os absurdos do governo fardado. Esse escritor foi o jornalista Carlos Heitor Cony, o lobo solitário, famoso por romper com os cânones da hipocrisia burguesa.
Em suas crônicas no jornal carioca Correio da Manhã, dirigido por Niomar Moniz S. Bittencourt, Cony desencadeou uma campanha destemida, perigosa mesmo, contra os inimigos da democracia, em prol do respeito à dignidade essencial da pessoa humana. Foi detido e processado, mas nem por isso calou-se. Essas crônicas foram reunidas em um livro, intitulado O ato e o fato – O som e a fúria do que se viu no Golpe de 1964, editado pela Nova Fronteira, o qual em 2014 teve a sua 9a. edição. Um livro cuja leitura é imperdível, porque reúne as narrativas de um tempo sombrio, de cerceamento da liberdade, de medo e de sofrimentos nas masmorras militares. Um livro que é um documento e um alerta contra as armadilhas do autoritarismo, um depoimento importante nestes tempos em que se ouvem nas ruas vozes insensatas clamando por intervenção militar no País, com menosprezo a tantos sacrifícios, tantos esforços, tanta luta empenhada para que se restaurasse a democracia em nosso país.
A leitura do sumário do livro já permite entrever, dos títulos dos capítulos, a fina ironia e a crítica aguda que Cony injeta nos seus vigorosos textos, entre outros: “Da salvação da pátria”; “O sangue e a palhaçada”, “O ato e o fato”, O povo e os caranguejos”, “Um castelo no ar”, “Cipós para todos” , “Judas, o dedo duro” , “Até quando”, A estupidez dos prebostes”, “Missa de segundo mês”, “O sangue e a pólvora”, “A culpa do marechal”, “ Bonde errado”, “Réquiem para um marechal, A vaca togada, Na cova do leão, “Epistola ao marechal-presidente”, “Urnas e quartéis”, “Ato institucional II”, “O maior crime “. Por suas críticas ferrenhas aos desplantes do governo de 1o. de abril (data do dia da mentira), foi denunciado e processado por transgredir a Lei de Segurança Nacional. Seu defensor foi o notável jurista Nelson Hungria, que fora ministro do Supremo Tribunal Federal, o qual obteve junto à Corte Suprema uma ordem de habeas corpus, que o livrou da Lei de Segurança do Estado. O escritor relatou que teve a sua casa cercada, suas filhas ameaçadas e ele mesmo ameaçado de morte e sequestro. Seus amigos aconselharam-no, naquela conjuntura, a solicitar asilo diplomático. Teimoso, Cony permaneceu no País, combatendo com sua pena os horrores da ditadura.
Em uma de suas crônicas, vocifera crepitante: “ As prisões estão lotadas, sujas de vômitos e de sangue. Essa nódoa será lavada, um dia, mas os homens que a toleram, os homens que a aumentam, esses ficarão com o estigma para sempre. E pagarão – um dia – a ignomínia e a violência”. Em uma outra crônica, clamando pelas eleições diretas, arrematava o seu texto com uma proclamação que fazia tremer os generais: “Militares aos quartéis, o povo às urnas”. Não era pouca coisa, num tempo em que pessoas eram torturadas nas prisões clandestinas, fuziladas nas emboscadas de rua, jogadas no alto mar, para servir de alimento aos tubarões. Sem filiação partidária ou identificação ideológica, Cony foi extraordinariamente fiel aos valores da democracia, da liberdade e da dignidade humana.