Opinião

O numinoso para além das mãos e pecados das beatas

Redação DM

Publicado em 17 de abril de 2017 às 03:47 | Atualizado há 8 anos

As concepções teístas, e, de um modo especial, a cristã, definem-se por predicados tais como espírito poderoso, razão. A concepção da divindade é razão racionalista reduzida daquilo que o homem é ou pode vir a ser em si mesmo, um elemento não racional ou ideia do divino em “orgé intelectual” com a fé esquizofrênica do racional. Discussão milenar, Cristo extravasa as fronteiras de um tempo histórico antes de si, para além do Egito e seus faraós, alcança a América Latina pós-moderna manipulada pelo capitalismo neoliberal, herdeira de Glauber Rocha e seu apocalíptico “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Na Terra descoberta por Cabral, devastada por piratas deportados, aportados, a catequização cristã foi feita pelos jesuítas. Hoje, alguns blogueiros agnósticos mais inflamados, não se sabe se pela escassez da fé ou o excesso de ceticismo, tramam a crítica do tecido social alinhavado nas certezas coletivas documentadas pelo goiano cineasta e antropólogo, Luis Eduardo Jorge na película “Subpapéis”, um mergulho nas profundezas da reciclagem do lixo urbano, através do trabalho desumano, que resgata o meio ambiente dando vida ao mundo do consumo.
Assim o é a religião, por razões de convicção e noções claras as quais se opõem ao puro, segundo Goethe: “O sentimento é tudo, o nome não é nada.” O cristianismo usa desses predicados como noções em forma de conjunto, sem esgotar a essência da divindade, pois relacionam com um elemento não racional, retórica que remete a ‘certa superioridade da corrente religiosa’, mal-entendido decorrente da língua cultuada. A divindade traz uma ideia de que o conceito caracteriza um elemento não racional, ou, inefável objeto, como interpretam as correntes do misticismo. A religião tem oposição ao racionalismo quando este pratica a negação do milagre, o que a tradição entende como provocação de um ser maior, inexplicável, autor e mestre cuja experiência a ortodoxia da religião não soube manter viva enquanto experiência, daí a ideia de Deus exclusivamente racional, apartado de seu filho na gênese da pregação doutrinária dualista, nada cristã, segundo Nietzsche devido “a ideia do reino de Deus estar filiado ao divino ou ao além, ao contrário, o reino dos céus é um estado da alma e não algo para além da Terra ou depois da morte” (ESCALA, vl. IV, p. 72). Variadas tendências dominam as pesquisas das religiões que penetraram o estudo dos mitos, da fé e tentativas do homem em descobrir suas fontes. Novos livros abordam o assunto, blogueiros e canais a cabo de TV expõem as contradições bíblicas, entre as quais as inconsistências sobre a vida do “filho de Deus”.
Coincidindo com o avanço do secularismo em várias regiões do mundo, ou talvez por causa disso mesmo, tem aumentado o número de estudiosos que questiona a existência do Jesus. Trata-se, obviamente, do Jesus histórico porque o mítico – o que nasceu de uma mãe virgem e ressuscitou três dias depois de ter morrido, o que andou sobre as águas é uma cópia tão descarada do deus Hórus, que só a mente embrutecida pela fé pode acreditar nisso” “http://www.paulopes.com.br/2017/01/numero-crescente-de-estudiosos-questiona-existencia-de-jesus.html#.WOubSEXyvDd). Para discussão que engloba aquelas de valor duvidoso, também as que detêm domínio das representações humanas em seus “símbolos sagrados tal como “Pai e Filho” significam, respectivamente, um sentimento da eternidade ou da realização, perfeição e a entrada no sentimento da transfiguração total de todas as coisas, ou seja, na ‘beatitude’” (idem). Não se deve ignorar como mananciais nos estudos das religiões suas expressões mais primitivas, sabendo que todas as extravagâncias místicas não relacionam com a razão e que a religião não se esgota em anunciados racionais quando da empiria do sagrado. O numinoso surge no estudo, interpretação e avaliação do sagrado que ocorre nas raias do religioso, um elemento que sobressai ao racional, sendo incompreensível conceitualmente por ser inacessível como a conceituação do belo em outras áreas de conhecimento. A polêmica alimenta as redes sociais divididas entre mouros e cristãos.
Em janeiro o blogueiro Paulo Lopes postou: “Os questionamentos sobre a existência de Jesus não são novos e agora eles voltam revigorados, atingem novas gerações além daquelas que antes só ficavam à mercê das pregações religiosas. Tudo pode ser resumido nesta constatação: a existência de Jesus não é sustentada por nenhuma fonte primária. Não existe o testemunho histórico de uma única pessoa que viveu na época de Jesus que dê respaldo ao que está escrito no Novo Testamento. Não há um único documento de alguém dizendo: ‘Eu vi Jesus’. Não há registro de nascimento nem do atestado de óbito. Nunca foi localizado um fragmento das transcrições do julgamento de Jesus. O que é estranho, para dizer no mínimo, diante da importância e fama de Jesus, de acordo com a Bíblia. Os evangelhos falam de Jesus, mas eles foram escritos e reescritos décadas depois da morte do filho de Maria por cristãos empenhados em fazer proselitismo. E quem foram essas escribas? Ninguém sabe. A credibilidade dos evangelhos como documento histórico é zero. O único escriba que pode ser identificado com certeza na Bíblia é São Paulo, mas ele também nunca viu Jesus. Embora as epístolas de Paulo tenham sido escritas bem antes dos evangelhos, não há nelas nenhuma fonte humana de informação, só divinas e o Velho Testamento. Isso ocorre inclusive em relação à ressurreição e a última ceia. São Paulo, além do mais, estava preocupado em impor a sua versão do cristianismo – e conseguiu. Os historiadores romanos Josefo e Tácito fizeram algumas poucas referências (tendenciosas) a Jesus, mas isso um século depois da suposta crucificação do ‘filho de Deus’. Também não tem validade nenhuma. Fato incontestável é este: faltam provas sobre a existência do Jesus histórico, faltam evidências” (http://www.paulopes.com.br/2017/01/numero-crescente-de-estudiosos-questiona-existencia-de-jesus.html#.WOubSEXyvDd). A postagem ou publicação foi motivo de exacerbada discussão entre deuses e diabos, cristãos e gentios.
O fato é que o sagrado, no sentido figurado, foge a seu conceito primitivo, ligado que está a conceitos de moral e ética, não aquela de Kant, chamada por ele de “vontade santa”, que tem como preceito a obediência sem reflexão ou vontade moral perfeita, doutrinação da história cristã que leva à crucificação de um Jesus que “não poderia querer outra coisa senão revelar publicamente a prova mais contundente demonstração moral de sua doutrina, indicada através de uma superioridade sobre toda a forma de ressentimento” (idem) e que foi morto por aqueles que não compreenderam tal mensagem, uma vez que havia necessidade de reparação, de castigo e de juízo, contrariando totalmente a mensagem evangélica de Jesus.
O sagrado é parte vital das religiões, sinônimo de vitalidade nas religiosidades embasadas na “Bíblia”, quando o conceito passa a ideia de bem aquilo que para outras é santo. O estado de alma que alcança a vida espiritual, em oposição aos fenômenos, conhecido como numinoso, afeta o ser criatura enquanto ser objeto daquilo que é numinoso, conceito que explica os sentimentos religiosos, os quais alcançam a emoção, a exaustão e a consciência a partir dos domínios da vida como experiência. Ao ser “lá em cima”, o homem, segundo Abraão, ciente de que “é pó e cinzas” (Gênesis 18.27) vive esse sentimento da criatura subjetiva que relaciona com um objeto fora de si mesmo. “Existe na consciência humana um sentimento de realidade, o sentimento e a ideia de alguma coisa que existe real e objetivamente” (JAMES, Wiliam, p. 58, apud Otto, p. 15. 1985), mesmo que o sentimento de ser criatura o implique num outro sentimento, o da depreciação.
Já o tremendo alardeia que as reações sentimentais não traduzem o numinoso ou sombra projetada na consciência. Diferente da fé na salvação, os sentimentos da piedade e do amor dão tonalidade aos ritos e cultos, exprimem o “mysterium tremendum” que toca a alma como calafrio, choques e convulsões, excitações e formas selvagens de expressões demoníacas ou tremor místico. Esse conceito é compreendido como a reação sentimental carregada de medo ou sentimento especial, temor a Deus, demônio enviado por Jahveh: “Enviarei o meu temor diante de ti. Desconcertando a todo o povo aonde entrares, e, farei que todos os teus inimigos te virem as costas” (Êxodo 23.27, apud Otto, p. 19, 1985). O terror numinoso surgiu na alma da humanidade primitiva, enquanto demônio da percepção mitológica, aonde se misturam os sentimentos de horror e mistério, prazer e desprazer, simplistas. A cólera de Jahveh reaparece no “Novo Testamento” como “orge theon” e o “Antigo Testamento” como força oculta da natureza, incalculável, arbitrárias segundo os homens piedosos da antiga aliança, expressão natural da cólera divina, “um espetáculo doloroso, horrível que se apresentou a meus olhos: tirei o véu que recobre a corrupção do homem” (NIETZSHE, s/d. p. 23)
Elemento do tremendo: “majestas” ou a superioridade absoluta do poder, o sentimento “tremendum” dá a tônica da inacessibilidade absoluta ao poder, à força ou majesta. Enquanto o poder relaciona o numinoso à “majestas”, o homem, consciente de seu próprio esfacelamento, na condição de “pó e cinza” o relaciona à humildade religiosa. A criação, conservação e dependência seriam a antítese ou causalidade nas quais aquele que salva é Deus em sua virtude enquanto causa universal. Esse contraste místico cristão sentencia que “o homem diminui e se dissolve em seu nada, em sua pequenez. Quanto mais a grandeza de Deus se revela, clara e pura, a seus olhos, melhor ele reconhece a sua pequenez” (GREITH, G., p. 144, apud OTTO, p. 24, 1985). Quando o homem torna-se pobre e humilde, Deus torna-se tudo em tudo: “Verdadeiramente, eu e toda a criatura somos nada, só tu és, e tu és todas as coisas” (SPAMER, IBID, p. 132, apud OTTO, p. 25, 1985).
Elemento do tremendo o “orgé” ou a energia do numinoso resulta da soma dos elementos “tremendum” e “majestas” formam o “numem” e coloca a alma humana em atividade a qual o homem conhece pela prova, seja no ascetismo ou na luta contra o mundo e a carne, ou ainda nos atos heroicos que a vida proporciona pelo viés da excitação ou reações mais fortes contra o Deus da filosofia, puramente racional, segundo os filósofos, produto do antropomorfismo. Bandeira antirracionalista  a luta pelo Deus vivo e o voluntarismo foi a mesma de Lutero contra Erasmo, um Deus que não conhece obstáculos. Com o misticismo esmagado por essa potência, resta o amor, ou, segundo um místico, a cólera apagada que Goethe entende como energia do numinoso demoníaco: “Porventura Deus não considerou loucura a sabedoria deste mundo? Visto que o mundo com sua sabedoria não conhece Deus na sabedoria de Deus, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação” (Nietzsche, in O Anticristo, p. 96). O mistério é “um deus compreendido não é um Deus” (Tersteegen) e traz a noção de mistério, tem ligação estreita com o “tremendum”, onde não se pode falar de um sem se referir ao outro.
Êxtases diferentes, “tremendum” e “mysterium” são claramente diferentes. O qualitativamente diferente (o totalmente outro). “Mysterium” é abstração feita ao elemento do “tremendum”. Em relação analógica, o estupor significa surpresa que paralisa, ou o homem boquiaberto, algo que nos é estranho. Num sentido religioso, e, dentro de seu mistério remete ao qualitativamente diferente, que nos é estranho, surpreendente, que está fora do domínio das coisas habituais como a alegria advinha do prazer sexual, pecado do qual sofrem as esquizofrênicas livres dos hospícios cercados de violência e grades, internadas nos templos de portas abertas, ou “as beatas que se agarram à cruz com medo do orgasmo”, segundo Nietzsche. Sobre a nevralgia da ficção que move o ser, a alma humana, o dramaturgo brasileiro, Nelson Rodrigues assim define: “Morbidez? Sensacionalismo? Não. E explico: a ficção para ser purificadora precisa ser atroz. O personagem é viu, para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós. […] E, no teatro, que é mais plástico, direto, e de um impacto tão mais puro, esse fenômeno de transferência torna-se mais válido. Para salvar a plateia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos e, em suma, de uma rajada de monstros. São os nossos monstros, dos quais eventualmente nos libertamos, para depois recriá-los (1957 apud CASTRO, 1992, p. 273, in http://www.repositorio.ufba.br:8080/ri/bitstream/ri/8623/1/Solange%20Santos%20Santana.pdf).
Presente nas formas religiosas primitivas o “tremendum” traz algo do sentimento numinoso mesmo que de forma grosseira, ligado a fenômenos estranhos e coisas encontradas na natureza, nos animais e na humanidade. Esse mistério é diferente daquele que pode ser investigado enquanto matéria física, por ser incomensurável ao advir da alma: “Que luz é esta que me clareia e que fere o meu coração sem ofender? Que me faz temer e abrasar! Tremo porque sou diferente dela, abraso-me enquanto com ela me reço” (Santo Agostinho, XI 9,1). O misticismo leva ao extremo por seu conteúdo conceitual ligado ao sobrenatural, o transcendente, manifestações dos predicados negativos e exclusivos em relação à natureza e ao mundo. Essa oposição ao objeto numinoso, o outro, não se contenta em simplesmente opor-se, ligado ao indecifrável contrário e oposto a tudo que é e que pode ser. O elemento numinoso trespassa quase todas as religiões em três graus: surpresa; paradoxo; antinomia. O misticismo torna-se teologia do extraordinário, livre da lógica natural contra a qual impera a lógica da “coincidentia oppositorum”. No livro “Nada a perder”, Edir Macedo expõe “não caí no chão, rodopiei nem senti tremedeiras ou chiliques” e prossegue em seus laboriosos parágrafos: “É um querer ardente, acima de qualquer outro sonho ou desejo do coração. Mais do que viver, casar, conquistar mundos e fundos, enfim, mais do que tudo que este mundo pode oferecer” (2013, p. 129). A saber, e isso o profeta pós-moderno – afeito ao cifrão – não explicita, o motivo de erguer, no metro quadrado mais caro do Centro da capital da América Latina, uma réplica do Templo de Salomão. A ideia, tornada concreta à custa de dízimos não declarados, seria um lampejo do “tremendum” ou ordem divina? A resposta repousa no âmago do livre-arbítrio permitido a partir da confissão dos segredos ou “não poderia ser uma simples vontade, mas, sim, um desejo semelhante ao pedido de perdão dos pecados” (idem).
O fascinante dá conteúdo qualitativo numinoso cativa e fascina, harmoniza com o elemento repulsivo do “tremendum”. O divino é para alma objeto de terror ao assumir a forma demoníaca, ao mesmo tempo em que atrai, seduz, torna humilhada a criatura que diante dele treme, humilha-se e perde a coragem, como por exemplo, diante dos Dez Mandamentos que apregoam não usar o nome de Deus em vão; não fazer uso de imagens; observar o sábado; respeitar os pais; não matar; não cometer adultério; não roubar; não mentir; não desejar o que a outro pertence. Diferente elemento perturbador é aquele conhecido como elemento fascinante, não racional que esquematiza o amor, a compaixão, a piedade e o consolo. Ao lado das manifestações e formas normais da atividade religiosa, e, das religiões simples, as raízes do misticismo, a identificação mágica do eu com o “numem” pela prática cultural e mágica por fórmulas e vocações.
De acordo com o apóstolo Paulo: “O que nenhum olho viu, o que nenhum ouvido escutou, o que não chegou ao coração dos homens…” dá exata dimensão de seu tremor dionisíaco. Enquanto isso a alma recorre a expressões puramente negativas e se distancia das imagens com hinos que a embriagam na maravilha de conceitos como a profundeza, o altíssimo, o inconcebível, o coração vazio, a representação de si e dos outros, a fraqueza e o pensamento que se perde. Uma delícia sem fim, o prazer mais que perfeito, o ato de se afogar na divindade a fim de ser inteiramente libertado da preocupação, da angústia e da dor. Sobre Paulo, judeu helenizado e cristão, (RUSSEL, 2001) afirma que “ao remover os obstáculos externos, contribuiu para que o cristianismo fosse universalmente aceito” (p. 175-176). Já Nietzsche entende que “Paulo é aquele que subverteu a prática de Cristo e a converteu em outro tipo de ‘boa nova’ ou uma ‘má nova’” (SOUSA, 2000, p. 31). O purgatório de Dante anuncia o teatro da salvação, o homem natural e o seu entendimento enquanto coisa cansativa, contrária a gostos e à sua natureza. “O apóstolo Paulo representa aos olhos de Nietzsche um duplo papel: ele mata definitivamente a ‘boa-nova’ e funda ao mesmo tempo o cristianismo” (ALMEIDA, 2005, p. 186).
Enquanto isso um mestre interior avisa da capacidade que possui o sentimento em dominar e conduzir a estados de quietude e júbilo, completudes que enchem a alma acostumada a “muitos processos disciplinares que existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação, diferentes da escravidão, pois não se fundamentam numa relação de apropriação dos corpos” (FOUCAULT, 1975, p. 126) Além do ser racional, existe na natureza humana o ser supremo que não se sacia a partir do alimento ou experiência capaz de saciar mais que suas necessidades física, psíquica e espiritual, as quais os místicos nominam “profundezas da alma”. Estudadas como grandes experiências ligadas à emoção religiosa, pureza, supremacia e disciplina determinadas na graça, conversão e regeneração denunciam elementos não racionais ligados às concepções das bem-aventuranças emocionais exaltadas às raias da anormalidade e estranheza dos convertidos despertados a partir do sentimento de júbilo que eleva sua alma. Sentimento este diferente daquilo que o senso comum possa compreender revelado nas palavras de Jacó da Boêmia: “Iluminou e ornamentou os seus espíritos”, as quais denotam caráter não racional como “uma tremedeira que continuava e eu não fiz o menor esforço para controlá-la. Uma imensa sensação de calma interior me invadiu, e eu senti uma espécie de presença ao meu lado. Olhei e vi o rosto de minha Morte. Não era a morte que eu havia experimentado minutos antes, a morte criada pelos meus terrores e pela minha imaginação, mas a minha verdadeira Morte, amiga e conselheira, que não ia mais me deixar ser covarde nem um dia de minha vida” (1987, COELHO, p. 121)
A confissão de fé no “mysterium fascinus” aparece nas palavras de Dchelaleddin: “A essência da fé é apenas um estupor admirativo, não para de desviar os olhos de Deus, não, mas para prendê-lo, embriagá-lo, no amigo e se afundar nele” (ROSEN, p.89, apud OTTO, p. 42, 1985). Também o Evangelho dos Hebreus anuncia ‘belas palavras’: “Aquele que o encontrar o admirará e, em sua admiração, ele será rei.” É o que se chama via “eminentiae et causalitatis”, que entende o divino como uma realidade mais elevada, onde Deus é, em si mesmo, uma essência à parte, acima do “deinos numinoso” dos gregos, de nível inferior por manter o terror e o sinistro, de acordo com Sófocles: “Muitas são as coisas enormes. Mas nada é mais enorme do que o homem”, para quem o enorme não é normal, mas perturbador, portanto deixa de ser sublime, e, concebido dessa maneira, o enorme torna-se confundível ao “stupendum ou mirum”, absolutamente inesperado e estranhamente diferente. Talvez o termo mais sensato para expressar o numinoso, sob todos os aspectos da palavra “enorme” estaria nas palavras de Fausto: “O tremor é aquilo que de melhor existe no homem. O mundo lhe faz pagar caro por esse sentimento, surpreso, ele emudece profundamente diante do enorme.”
Analogias à parte, o conceito do sublime, segundo Kant, é uma noção não analisável. Do ponto de vista “dinâmico” ou “matemático”, apresenta manifestações poderosas de energia ou pela grandeza espacial, as quais aproximam os limites da capacidade humana intelectual de correr o risco em superá-las. Esta noção exerce profundo poder sobre a alma, dá-lhe impressão repulsiva, ao mesmo tempo, atrai, humilha, exalta, a comprime e eleva provoca medo e beatitude. A lei da associação dos sentimentos denuncia evidências nas teorias revolucionistas, modernas, as expressões “excitar” e “transferir” dão margem e lugar a certos erros. A psicologia afirma que as ideias se atraem, porém “o sentimento não se transforma; isso seria uma metamorfose, semelhante à transmutação dos metais em ouro, seria uma alquimia psicológica” (OTTO, p. 48, 1985).
Se houver essa transformação, admitida pela doutrina transformista isso aparece na expressão “evolução gradual” (de um estado qualitativo a outro) ou “epigenesis” e “heterogenia”, campo que desconhece a ideia do dever que constrange, impõe-se pelo hábito qualitativamente diferente. Mas o dever é conteúdo conceitual, uma característica primária não gera outra, de acordo com OTTO: “Não se poderia tirar do vinagre a sua cor” (1985, p. 49). Mas é da natureza humana que a ideia do dever pode proceder e despertar o espírito, fato que coloca o processo histórico, como o admitem os evolucionistas, consistir na aparição gradual e sucessiva de diferentes elementos sentimentais numa ordem histórica determinada. A obrigação impunha o costume, o dever e as obrigações práticas as quais levam o homem a passar de um sentimento a outro, ao invés de substituir ao homem, transmutar de um em outro. Esse feeling é moralmente igual ao sentimento do numinoso, e, elimina a evolução, lembrando que o sentimento do sublime é que desperta a atração do numinoso. Assim, aparece o sentimento religioso, tardio, mesmo assim para despertar e libertar o humano a partir das suas profundezas ou desconhecimentos do espírito, da razão e de suas faculdades a priori, muitas das vezes advogadas por santos cujas “histórias são a mais equívoca literatura que se possa imaginar: aplicar a elas o método científico, quando não se dispõe de outros documentos, aí está uma empresa que me parece condenada de antemão – simples passatempo do erudito…” (Nietzsche, p. 64)
A esquematização do sentimento religioso é atada à realidade, e não, associado, como o quer a analogia puramente externa. Na teoria de Kant existe uma ligação entre a categoria da causalidade com o esquema temporal, ou, a sucessão de dois fenômenos, na qual se reconhece causa e efeito, o que remete tal esquema à ideia complexa do sagrado, elemento numinoso não racional de uma categoria complexa. A associação do sagrado com o sublime não se reduz a sentimentos por ser o verdadeiro esquema do sagrado uma conexão íntima e duradoura dos sentimentos, a exemplo da felicidade, que de acordo com Nietzsche “vem em lampejos, e tentar fazer com que ela dure para sempre é aniquilar esses lampejos que nos ajudam a seguir em frente no longo e tortuoso caminho da vida” distante da afeição que atiça a sensibilidade sexual, ou, instinto, em oposição ao numinoso, por ser parte da vida impulsiva e instintiva, portanto, abaixo da razão por denotar a natureza animal do ser humano, ou ainda dois polos diferenciados da humanidade.
Os instintos humanos abrangem diferentes sentimentos que vão da simples reprodução humana aos desejos os quais alcançam as raias da imaginação criativa no erotismo com causalidade na afeição na amizade, quem sabe, no lirismo da poesia, expressões simples emprestadas da vida sentimental a qual perde sua candura quando se sabe que, naquele discurso, é um amante que fala, versifica ou canta. Assim como uma criança que fala do pai, a noiva que remete ao enamorado ou o que os homens pensam e contam de Deus: “Devemos temê-lo, amá-lo, confiar nele”, palavras que somente o homem religioso entende as quais esboçam alguma coisa a mais, não somente a intensidade. Sobre o amor, em especial o amor de Deus, de acordo com Suso: “Nenhum acorde pode ser sonoro se ele sai de uma boca seca que não mais produz som. Um coração sem amor não pode compreender uma linguagem de amor, assim como um alemão não compreende um italiano” (WERKE, p. 309, apud OTOO, p. 52, 1985).
Expressos nas mais diversas formas das afinidades sensíveis, os estados emocionais retratam um mundo fatiado em mercado, movido a formas e sons, onde o destino (des) humano é exposto ao sol e chuva que alimentam o drama da representação de papéis e subpapéis no palco da vida material que ainda no século XXI ressente da capacidade racional capaz de realizar o parto do charme que é provar pela palavra do conceito vida. Ao respirar, sentir e cantar seus delírios por meio da ação, os homens retratam diferentes enigmas (pecados) mesclados a sentimentos irracionais de um mundo racionalizado e castrado em suas sensações, a partir das falácias numinosas, cada qual, com sua realidade independente do que possa significar o fetiche que dá ao significante o louvor ao puro no pecado que bebe do impuro. Há mais que uma moral enrustida no confessionário, muito mais que uma simples resenha da ética exposta a centavos. Ali, nem mesmo o santo é capaz de contar em voz baixa ao diabo o que possa representar a loucura da (in) sensatez (des) humana em decifrar o crucifixo numinoso para além da tatuagem exposta nas costas do presidiário, ostentado nas paredes das instituições do Estado ou a reluzir nas mãos das beatas.
E o pulso, ainda pulsa!
(REFERÊNCIAS: COELHO, Paulo. O Diário de um Mago. Klick 1987; FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir – História da violência nas prisões. Gallimard. 1975; MACEDO, Edir. Nada a perder. Unipro. 2013; MESTERS, Carlos. Um projeto de Deus. Paulinas, 3ª ed. 1983. p. 27-29; NIETZSCHE, Friedrich W. O Anticristo. Escala. 2008. 2ª ed; OTTO, Rudolf. O Sagrado. Imprensa Metodista. 1985, p. 7-53; http://www.paulopes.com.br/2017/01/numero-crescente-de-estudiosos-questiona-existencia-de-jesus.html#.WKo4EtIrLDc; http://portacurtas.org.br/filme/default.aspx?name=subpapeis)

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