Opinião

Adegmar e o intelectual do Direito

Redação DM

Publicado em 18 de março de 2017 às 02:36 | Atualizado há 8 anos

A pretexto de elaborar tese a que denominou “O Intelectual do Direito e a Organização da Cultura”, o professor Adegmar José Ferreira, Juiz de Direito da Comarca, em que assinala: “Em homenagem aos 150 anos de criação dos primeiros Cursos Jurídicos no Brasil (Olinda/Recife e São Paulo, em 11 de agosto de 1827), Bevilacqua dá ênfase à importância  e ao significado da atuação do intelectual do Direito na consolidação da Independência do Brasil.” Em Goiás, a expectativa com a criação e instalação do Curso de Direito, também era grande. A carência de Bacharéis nessa área para o provimento de cargos das estruturas da burocracia estatal era evidente. Haia muito por se fazer. Tanto que os primeiros Bacharéis formados na Academia de Direito de Goiás, instalada em fevereiro de 1903, num total de 16, não foram suficientes para o preenchimento do número de vagas aos cargos do Judiciário, do Ministério Público e da Segurança Pública” (Abel Soares de Castro, in ‘Origem dos Institutos Jurídicos de Goiás’, 1946, Edição do Dep. Estadual de Cultura). E, mais adiante: “Antes da criação da Faculdade da UFG, foi criada a Academia de Direito de Goiás (1903-1909), por iniciativa do jurista e político José Xavier de Almeida, então presidente de Goiás, que foi fechada provisoriamente por meio do Decreto 2581, de 18 de dezembro de 1909, aprovado pelo Congresso Legislativo, e pela Lei 362, de 30 de junho de 1910. Em razão dessa decisão governamental, Goiás, até 1916, não mais dispôs de estabelecimento de ensino jurídico, uma vez que a Academia não retomou suas atividades, sendo definitivamente fechada. Porém, em 10 de junho de 1916, criou-se a Faculdade Livre de Direito que, posteriormente, em 20 de março de 1917, passou a se chamar Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais, esta de efêmera duração (1916-1920), período suficiente para formar uma única turma de Bacharéis, cuja colação de grau se deu em dezembro de 1920, conforme se evidencia de um Aviso publicado no ‘Correio Oficial’ número 526, de 1.o de novembro de 1921, pelo qual referido estabelecimento de ensino, passaria a denominar-se Faculdade de Direito de Goiás, cujo funcionamento passaria a existir, com esta denominação, de 1925-1931, e, mais tarde, Faculdade de Direito da UFG, a partir da criação da UFG – Universidade Federal de Goiás, pela Lei 3.834-C, de 14 de dezembro de 1960, ainda pelo Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira.

No Brasil, a instituição universitária é uma entidade relativamente recente. Dadas as peculiaridades de nossa colonização, a história do ensino superior é marcada pela coexistência de elementos diversos, o que vai se refletir também nas instituições universitárias. O ensino superior, desde o seu início, apresenta-se desprovido de caráter nacional, influenciado pelo espírito colonialista e colonizador. Recebemos não apenas uma herança cultural, mas também uma herança e uma tradição de dependência econômica e social. Mantinha-se o privilégio de se fazer um Curso superior, pela simples razão de persistir o privilégio de riqueza e de classe. Havia uma convergência na maneira de conceber essas instituições de ensino, tanto por parte das classes dominantes, quanto dos setores intermediários: De modo geral, poucos eram os que orientavam seus Cursos para os problemas de nossa realidade. Criadas somente no início do século passado, as escolas superiores nasceram desprovidas de um papel criador e inovador em nossa realidade. Organizaram-se, formalmente, como um serviço público, mantidas e controladas pelo governo, e voltadas, sobretudo, para a preparação de profissionais liberais: Médicos, advogados, engenheiros, etc. Para uma sociedade essencialmente agrária e dependente, são os Cursos de Direito, de Medicina e de Engenharia que servem de instrumento para a ascensão social, manutenção e consolidação do regime”. Nessa luta, destacam-se, dentre outros, o extraordinário educador Colemar Natal e Silva que, além de outras providências de relevo, integrou a Comissão para escolha do local onde viria a ser construída a nova Capital do Estado de Goiás. Foi baseado na Doutrina elaborada pela Carta de 1946, que o então Ministro da Educação, Clemente Mariani, constituiu um Comissão de Educadores com a finalidade precípua de estudar e propor Projeto de Reforma Geral da Educação Nacional. No ano de 1948, esse Projeto era apresentado na Câmara Federal, seguido de Mensagem presidencial. Começa, então, um dos períodos mais fecundos da luta  ideológica, em torno dos problemas da Educação, luta iniciada em 1920, que consagrava o princípio da descentralização, “reservando ao governo federal a fixação de metas e a ação supletiva, financeira e técnica. Todavia, enquanto a União se debatia, em sua crise institucional de Parlamentarismo versus Presidencialismo, os fatos mais importantes em matéria de educação se deslocavam da área do governo federal para emergirem nos âmbitos regionais e/ou institucionais. A teoria elaborada do ‘II Congresso Nacional de Educação de Adultos’ buscava sua práxis nos movimentos de cultura popular.

A análise dos resultados extraídos da pesquisa empírica, por meio de entrevistas semiestruturadas, e a interpretação dos dados coletados à luz das categorias teóricas herdeiras do pensamento gramsciano permitiram ao pesquisador ‘concluir’ que o intelectual do Direito, como de resto todo intelectual, é um sujeito histórico de ação e intervenção socioeducacional politicamente relevante na configuração das estruturas e superestruturas da sociedade civil e na simultânea manutenção ideológica ou contraideológica da sociedade política ou do Estado em que se encontra inserido. O conhecimento da origem econômico-familiar, dos conflitos e contradições e internas que perpassaram e delinearam a formação, a atuação, as experiências e as práticas profissionais dos profissionais investigados, suas conexões intrínsecas, além de subsidiar o autor desta pesquisa no sentido de identificá-los e precisar o ‘lugar’ de onde vieram, e de onde falaram e falam, pensaram e pensam, agiram e agem profissional e politicamente, permitiu que o pesquisador chegasse à ‘conclusão’ de que esses intelectuais são ‘organicos’ do tipo ‘funcional’ gramsciano e que, como tal, atuaram e atuam nos bastidores forenses, nos diversos ramos do Direito (Público e Privado, e dos Direitos Sociais), exercendo atividades tipicamente jurídicas, tanto nos lócus forenses, como nos lócus educacionais, mais precisamente nos universitários, onde atuaram vários deles, e onde ainda atuam alguns outros, contribuindo como juristas-professores. Até o momento, não se chegou a um consenso sobre o marco inicial do nascimento do intelectual e dos primeiros estudos a seu respeito. Tanto que Le Goff (1988, p.20) afirma que o intelectual nasceu na Idade Média (Século XII), e que seu ressurgimento, no Ocidente, coincide com o Renascimento nas cidades. O ‘intelectual’, a ‘organização da cultura’, a ‘hegemonia’, as ‘estruturas’ e ‘superestruturas’, ‘sociedade política’ e a ‘sociedade civil’, bem como o ‘Estado Ampliado’, são categorias de análise que Gramsci formulou, no bojo mesmo da elaboração de suas idéias e militância política, sobre a sociedade de seu tempo em discussão com Marx. Tanto que alguns dos intérpretes do pensamento filosófico italiano a ele atribuem o mérito de ter concebido o Estado como momento simultâneo de violência e de consenso, ampliando por meio dessa compreensão a noção de Estado como momento, assentado apenas na coerção, na dominação e na violência, conforme pensava Marx. O pesquisador pode inferir que a educação, a cultura, a escola, a Universidade e o princípio educativo constituíram temas que sempre estiveram presentes nos estudos e reflexões de Gramsci. Na esteira deixada por ele, foram pesquisadas a origem, a formação e a atuação política e profissional dos intelectuais do Direito, em Goiás, adotando-se, como parâmetro, as experiências vividas pelo grupo dos 22 intelectuais formados na UC/UCG. O intelectual do Direito e a Organização da Cultura e UFG, no terceiro quartel do Século XX, que se dispuseram a participar da pesquisa. Sem descuidar das categorias de análise gramscianas que, paulatinamente, iam fundamentando e sustentando a interpretação da formação e atuação profissional dos sujeitos investigados, esta pesquisa foi conduzida pelas seguintes categorias de trabalho eleitos.

No desdobrar desse processo investigativo, foi possível delinear o significado da formação e da atuação profissional dos intelectuais do Direito que, mais do que responder às inquietações do sujeito pesquisador que se imiscuía em suas trajetórias de sujeitos históricos, iam contribuindo, diretamente, para a interpretação do significado de suas contribuições para a organização da vida social, política e educacional de Goiás, particularmente para a educação que se desdobra nos cursos de Direito das Universidades em que atuaram e que alguns ainda atuam como docentes. Seus relatos indicam, quando entram da formação recebida, que, para além da formação jurídica (para uns, sólida do ponto de vista teórico,e,para outros, nem tanto), as Universidades que os formaram pouco fizeram para oferecer uma formação que pudesse levá-los à reflexão crítica de seu papel, enquanto sujeito político-social-transformador para com a sociedade na qual se encontram inseridos. Nesse sentido, tanto a UC/UCB como a UFG, na formulação e execução de seus projetos acadêmicos, limitaram-se à formação do Bacharel em Direito para o mundo das carreiras jurídicas. Além disso, essa formação era oferecida por um viés estritamente acadêmico-positivista, que contribuiu para a elaboração de uma concepção de mundo dogmática-codificada, voltada, prioritariamente, para as generalidades do Direito, objetivando a formar advogados, consultores jurídico-empresariais para o mercado, e servidores para as estruturas da burocracia estatal (juízes, promotores, delegados, procuradores, etc.), limitando a formulação de uma visão política do papel social do intelectual do Direito como jurista e/ou jurista-docente.

Evidencia-se, assim, por meio da própria interpretação dos intelectuais entrevistados, o papel social, político e profissional da universidade, como parte constituída e constituidora do projeto de desenvolvimento econômico, social, político e cultural da sociedade, e o papel do Ensino Superior na organização da cultura e da vida social e política do Estado. O intelectual do Direito integrado ao seu grupo profissional (jurista, e/ou jurista-docente) passa a compor, a um só tempo, o grupo de intectuais ‘orgânicos’ ou ‘urbanos funcionais’, as estruturas políticas e as superestruturas da sociedade civil, cuja função dominante é a de concretizar o papel da cultura na reprodução e na transformação da sociedade. Portanto, esta investigação levou o pesquisador a ‘concluir’ que, desse processo de transformação social, o intelectual surge como importante protagonista organizador (Gramisci, 1991, p.9).

Os alunos, reitores, docentes, diretores e servidores, enfim a UC/UCG e a UFG sofreram os efeitos deletérios dos atos de arbitrariedade do regime militar, decorrentes do golpe militar de 1964. No período investigado, muitos deles, particularmente aqueles do quadro da UFG, foram presos, cassados, exilados, demitidos e aposentados. O ‘clima’, no ambiente universitário, era de medo e apreensão. Tanto que a Secretaria do Curso de Direito, e o Centro Acadêmico ‘XI de Maio’ da UFG foram temporariamente fechados por ordem do ‘governo’ militar. O direito à liberdade de expressão em sala de aula e fora dela foi garroteado, os discursos preparados para as solenidades de formatura eram previamente censurados por órgão da Polícia Política. Muitos dos bons professores (particularmente, os críticos do regime) foram alijados de seus cargos e substituídos por novos, nem sempre adequadamente preparados para o exercício do magistério superior, o sistema seriado foi substituído pelo regime de créditos, a organização curricular das disciplinas sofreu alterações com a inclusão da disciplina ‘Estudos dos Problemas Brasileiros’(EPBP).

Durante o regime de exceção, editaram-se os Decretos-Leis número 53, de 18 de novembro de 1966, e 252, de 28 de fevereiro de 1967, que, dentre outros objetivos, fixavam princípios e normas de organização para as universidades federais.

Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968, e a reforma universitária foram realizados nesse mesmo ano. Poucos foram os intelectuais do Direito que se declararam atingidos pelo regime militar, no exercício de suas atividades típicas de jurista, ou seja, na Advocacia, no magistério, no Ministério Público, na Segurança Pública e outras atividades correlatas. Para a maioria dos intelectuais, professores, e outras atividades similares, o regime militar, além de castrar e interferir nas liberdades profissionais, docentes, alijou os movimentos classistas e político-estudantis.

Ao interpretar o significado que a atuação profissional desses intelectuais teve e continua tendo para a educação, em Goiás, e, particularmente, para a organização da vida social, política e educacional do Estado, pôde-se identificar que, 16 (dezesseis) dos sujeitos da pesquisa optaram pelo Curso de Direito motivados pela necessidade de sobrevivência. Isto porque o Curso de Direito era o único que permitia ao aluno oriundo das camadas populares, estudar e trabalhar ao mesmo tempo. Os atributos ‘vocação’ e ‘idealismo’ raramente aparecem em depoimentos dos membros do grupo pesquisado, como algo definidor de suas opções pelo Curso. José Bezerra da Costa chegou a afirmar que ‘(na verdade, estava preocupado em encontrar um lugar ao sol)’. Ou seja, antes de qualquer coisa, buscava garantir a sobrevivência. Todavia, devesse acrescentar que todos os intelectuais entrevistados se deram por satisfeitos pelo que realizaram em suas atividades profissionais e, também, por terem atendido às expectativas e aos desafios sociais, culturais e educacionais postos pela sociedade. Todos declararam terem sido (alguns ainda são) professores, a maioria ainda o são na UCG e UFG, por vários anos, e, por meio dessa condição, todos externaram um sentimento permeado de orgulho, e de ‘dever cumprido.

Há uma estreita relação entre a noção de ‘Estado ampliado’ e a noção de ‘intelectuais’ formulada pelo filósofo italiano. O papel dos intelectuais na organização da cultura, articula-se, efetivamente, ao processo de ampliação pela noção marxiana de Estado. Como se dá, então, esse processo, e em que momento os Intelectuais efetivamente dele participam? Quando esses intelectuais passam a existir como sujeitos do processo, como pensam e atuam, e em que condições integram as estruturas e superestruturas da sociedade civil de que fala Gramsci?  Interpretando o significado da atuação político-profissional dos intelectuais do Direito (intelectuais ‘orgânico-funcionais’), particularmente para a educação de Goiás, pôde-se argumentar que esses intelectuais, como juristas e juristas-docentes, participaram e continuam participando, ativamente, do processo de constituição do Estado ampliado, nos parâmetros delineados por Gramsci, na medida em que participam e contribuem , por meio de suas idéias e práticas , para a sustentação das estruturas e superestruturas da sociedade política.

Fundamentando-se, para fazer essa afirmação, o pesquisador passou pelo estudo das relações entre a universidade e a formação acadêmica por ela oferecida; das relações entre a universidade, o ser, o ter e sua natureza; das relações entre os intelectuais do Direito e a organização da vida educacional de Goiás; da presença da universidade de Goiás e o surgimento dos Cursos Jurídicos; de seus idealizadores e suas intencionalidades. Passou, também, pela investigação da Faculdade Goiana de Direito, desde a UG à UCG/PUC Goiás e, ainda, pela investigação da UFG. Foi, portanto, por meio dessas conexões de todos os elementos apanhados em todo o processo investigativo que o pesquisador reuniu argumentos que lhe permitem afirmar a importância significativa da atuação desses profissionais do Direito, em que pesem os limites políticos e ideológicos que deram contorno às suas atividades jurídicas e jurídico-acadêmicas, para a organização da vida social, política educacional de Goiás, e para a organização da cultura, nos marcos delineados pelo pensamento de Gramsci (pág.196).

 

(Licínio Barbosa, advogado criminalista, professor emérito da UFG, professor titular da PUC-Goiás, membro titular do IAB-Instituto dos Advogados Brasileiros-Rio/RJ, e do IHGG-Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, membro efetivo da Academia Goiana de Letras, Cadeira 35 – E-mail [email protected])


Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia

últimas
notícias