Brasil

A morte de Doracino, uma grande perda

Redação DM

Publicado em 11 de março de 2017 às 02:35 | Atualizado há 9 anos

A despeito da ampla divulgação do falecimento do ilustre jornalista, notadamente no “Diário da Manhã”, com destaque ao “DM REVISTA”, edição de 04 de março, Pag.1, criterioso trabalho da lavra da jornalista Rariana Pinheiro, com oportuna ilustração fotográfica, ocupando toda uma página, mesmo assim cabem novas manifestações sobre o papel desempenhado por esse dedicado trabalhador na seara das letras a serviço da cultura goiana. Com efeito, Doracino, o “Dora” de nossa intimidade, foi um obreiro incansável do jornalismo cultural, a serviço de Goiânia, de Goiás e do Brasil. Seu trabalho não se limitou às letras, pois militou na Política, elegendo-se Vereador à Câmara Municipal de Goiânia. E fez incursões pelo empreendedorismo cultural, criando, com sua esposa, a escritora Clara Dawn, a Editora “Livres Pensadores”, de grande repercussão, em toda a região.  Além dessa atuação, que foi marcante, também levou à televisão principais figuras, com o seu programa “Raízes”, revista cultural por onde passaram as mais notáveis figuras do mundo cultural de Goiás, com destaque aos integrantes da AGL – Academia Goiana de Letras, na sua edição semanal de grande repercussão em toda a Região.

Como justa homenagem, aqui transcrevo a derradeira crônica do “Dora”, publicada no “DMRevista” de 25 de fevereiro, ‘Verbis’: “Depois que me engracei com o jornalismo cultural, não tenho tempo para mais nada além disso. Sou um idealista com cara de imbecil, mas tenho o universo dentro de mim, porque ponho o melhor da minha alma em tudo o que faço. Por isso, vivo o coletivo. Hoje, sem descuidar das cogitações desse espírito inquieto, o centro das minhas atenções, depois da família, é a cultura e o jornalismo. Acredito em utopia, inclusive na maior fantasia do Criador, o homem. Igual à mangaba, o homem só dá fruto nas alturas, no céu das quimeras. A cultura popular ensina que a mangaba é um santo remédio para curar a hipertensão. Mas, claro, não substitui o exercício do sexo feito com amor, ao final da sedução. Luiz Baiano, andarilho que contratei como caseiro numa pequena chácara na ‘Vargem Bonita’, curtia sua paixão, além da cervejinha. Luiz arrastava as asas para o lado de Gerci, vizinha curvilínea com cara de aventureira safada. – “Patrão, ela tem um cangote tão branquinho… Gerci era a mulher do dono da venda. Luiz passava mais tempo lá do que na chácara. O mato crescia, o cachorro latia, e ele nada fazia. Assim, passava o dia. Fui durão, mas gostava do seu jeito descolado da realidade. Disse-lhe que, se quisesse vencer na vida, teria que trabalhar.

“- Sabe, patrão, a minha meta na vida é não vencer. Se me sentir realizado, eu paro. Nem imagino onde será o ponto final da minha história. Os lugares para mim são estações de uma longa jornada. Sou um cidadão do mundo. É assim que me encontro. Já vivi em muitos lugares do Brasil. Não vou ficar aqui por muito tempo. Por isso, não vou polir as  minhas grades. Quero me libertar da prisão rotineira dos lugares, das pessoas e de suas crenças. Um dia, vou embora com a Gerci. Fiz cara de zangado, pois ela era casada. Ele nem ligou para a minha bronca, e continuou seu blá-blá-blá.

Calei-me, diante dessa cantilena. Mais tarde, depois do banho, Luiz jogou ‘Leite de Rosas’ no corpo, me pediu dez reais para ir à “Festa de São João’, na venda do ‘Pato Rouco’, do outro lado do ‘Córrego Sapé. Isso foi numa sexta-feira, à noite. No sábado, ao por do Sol, ele ainda não tinha voltado. Eu tinha um compromisso de visitar um tio, em Palmelo, e fui. Quando voltei, no domingo, nem sinal de Luiz. Pensei que tinha se ofendido com a minha bronca e ido embora. Na segunda-feira, pela manhã, quando saía para trabalhar, ele apareceu sujo e arranhado. Mas nada de grave. ‘– Patrão, o senhor nem imagina o que me aconteceu. No meio caminho, tinha um buraco seco de cisterna. Caí, e lá fiquei sem jeito de sair. Eu estava pertinho da venda do ‘Pato Rouco’. O pior foi ouvir a voz animada de Gerci, dançando a noite toda. Para o senhor não duvidar de mim, olha aqui os dez reais que o senhor me deu. (O dinheiro estava sujo e amarrotado). Quem me salvou foi o Zé do Leite que, agora de manhã, ouviu os meus gritos, e jogou uma corda por onde subi até a boca daquele buraco.

‘Havia ingenuidade no jeito simples de Luiz Baiano, alma quase pura. Isso me comoveu a ponto de não ligar para o seu modo livre. Fui trabalhar, certo de que o mato continuaria a crescer sem ele capinar. Pensei em arrumar outra pessoa para fazer o serviço, e deixá-lo livre para cortejar a sua amada. Mas reconheço que havia um certo fascínio naquele sujeito. –  Preocupado, voltei mais cedo do que o costume. – Luiz! Luiz! Onde você está?

Pensei que estivesse no córrego que corre no fundo da chácara. Bati à porta do seu quarto. Silêncio… Um calango apressado estalava as folhas secas que não param de cair do pé de guapeva. No alto, um pássaro cantou

Bem-te-vi!…

O vizinho, fofoqueiro, vem com a notícia que mal cabia na boca:

– Luiz Baiano fugiu com Dona Gerci. Precisa ir à Delegacia dar Queixa, ele roubou seu carrinho de mão.

Nem liguei para a lamúria do vizinho, nem ao carrinho de mão. Afinal, Luiz Baiano encontrara sua cara-metade andarilha. Continuaria sua aventura pelo mundo. No íntimo, desejei que fossem felizes. Há algo misterioso que chama os andarilhos a rodar o mundo nas patas do cavalo do tempo, do amor e da morte.

‘Carpe diem, quam minimum crédula postero (‘aproveite o hoje, confie o mínimo possível, no incerto amanhã). ‘Carpi diem!’

A foto do casal estampada na página deste jornal evidencia o momento de felicidade vivido, então. Clara Dawn sóbria e elegantemente vestida, um belo colar, o cabelo bem penteado, destacando o livro ‘O cortador de Hóstias’, sobre o qual tive o privilégio de escrever nas páginas do “Diário”, há alguns meses, artigo que me rendeu calorosos elogios, de que guardo ternas recordações.

 

(Licínio Barbosa, advogado criminalista, professor emérito da UFG, professor titular da PUC-Goiás, membro titular do IAB-Instituto dos Advogados Brasileiros-Rio/RJ, e do IHGG-Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, membro efetivo da Academia Goiana de Letras, Cadeira 35 – E-mail [email protected])

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