Todo carnaval tem seu fim
Diário da Manhã
Publicado em 7 de março de 2017 às 02:11 | Atualizado há 8 anos
A canção que abre o disco Bloco do eu sozinho (2001) da banda Los Hermanos, talvez a última banda de rock a conseguir um leve status de lendária no Brasil pós-internet, traz ao público o título dessa matéria: todo carnaval tem seu fim. No Brasil, essa frase ecoa e reverbera pela mente de inúmeros cidadãos, festeiros ou não, e acaba criando um ano novo simbólico. Quando o carnaval acaba, a pressão aumenta, muitos sentem-se finalmente obrigados a acordar para a vida e esquecer a ilusão que começou aproximadamente no natal, carregada de todo o processo simbólico que envolve uma virada de ano, encontro com familiares e inúmeras ressacas emocionadas pelas histórias novelescas de parentes e amigos que se materializaram neste período.
Goiânia, a cidade passional, pulverizada por diálogos de novela e música sertaneja, apresenta aos seus cidadãos uma persona peculiar durante o carnaval. Para muitos goianienses a regra é jamais entregar os pontos permanecendo no recinto. É preciso viajar, para qualquer lugar. Não importa o aperto no orçamento, nem que seja pra Caldas Novas. Diz a lenda que as ruas ficam desertas. Nesse ano pratiquei o exercício de perceber que nem tanto, mas de fato algo toma conta da cidade. As ruas parecem acalmadas e exorcizadas do frenesi obrigatório. A região têxtil, do comércio louco, que vai de Campinas à rua 44 passando pela Bernardo Sayão e Feira Hippie, descansa um estranho sono, comprovando a existência e eficácia do feriado prolongado.
Para 2017, a tendência parece ser desejar feliz ano novo às pessoas em pleno 6 de março. O costume já é antigo, pelo visto. É considerado uma piada de tiozão obrigatória, mas parece ter se feito mais visível depois de um ano em que as pessoas se acostumaram a conviver com os impactos da palavra crise. A canção da talvez lendária banda Los Hermanos nunca fez tanto sentido, depois de um longo e entorpecente carnaval. “O dia insiste em nascer pra ver deitar um novo”, escreve Marcelo Camelo, e não, infelizmente não podemos parar. A lenda da Goiânia calma, de ruas vazias e trânsito suave encarregou-se em dizer e gritar da forma mais simbólica possível de que sim, estávamos vivendo um feriado, e pelo sopro do vento que corria mais livre, dava pra sentir que ele iria acabar.
É estranho enxergarmos os planos que fizemos transformados em memórias discrepantes das expectativas românticas que criamos, uma realidade simples que apenas atesta a coerência da vida. Mais estranho ainda é diluir tais memórias em nossas mentes. Algumas delas novelescas à nível mexicano, parecem resistir como uma gota de óleo em um copo de água. O fim do carnaval parece obrigar-nos a escrever uma crônica de jornal impresso. Buscar no limbo do inconsciente memórias que nos guiem no processo de remontagem de um quebra-cabeças intitulado vida. Março nos obriga a adornar todas essas memórias, e mesmo na mente dos que observam apenas como uma data, as ruas vazias estavam ali para desmentir a ordinariedade pretendida.
2017 é uma epifania, o ano pós 2016. É como o álbum seguinte ao que fez a banda estourar. É como o In Utero (1993), disco lançado pela mais-afirmavelmente lendária banda Nirvana, depois de ter chacoalhado o planeta com o Nevermind (1991), o clássico álbum com a capa do bebê na piscina com a nota de dinheiro, esculpido pelo suicida Kurt Cobain com perfeccionismo. E tanto faz se gostamos ou não de Nirvana ou Los Hemanos. As duas bandas, de certa forma, são um terror para muita gente que se diz entendido de música. Juntamos esforços em transformá-lo, 2017, em um ano futurista, e não pense que estou falando de política, mas de um certo fluxo interrompido que pode ser sentido no cotidiano.
Obrigados a olhar pro horizonte, tentamos ver os acontecimentos do carnaval como parte de um grande momento surrealista na memória de nosso ano. Se dermos-lhes a devida atenção, não teremos forças para analisar o presente. Cheiros, toques, gostos, respiradas profundas. A configuração da casa de amigos, amigos de amigos e conhecidos não acha espaço para a análise detalhada que você gostaria. Os inbox de Facebook parecem a sua casa desarrumada depois que todos foram embora. Alguns são porões obscuros que seus amigos usaram para jogar as mais profundas epifanias por conta de algo que você se esforça em analisar como corriqueiro, coisas da vida. A melhor saída talvez seja tomar um chá de boldo, e enfiar as lembranças de qualquer jeito na cabeça.