Haverá sempre uma criança
Diário da Manhã
Publicado em 1 de março de 2017 às 00:47 | Atualizado há 8 anosEla não sabia de onde vinha aquele farfalhar misterioso. Não o pressentiu saindo de nenhum dos cômodos negros àquela envergadura da noite. Também não se importava. Nada lhe poria mais medo. Nada.
Tentou virar-se imediatamente para constatar o que era. Porém uma força arrebatadora impedia-lhe de realizar qualquer movimento externo, rebuliçado que estava o interior. Isso sim a amedrontava. Havia barulho desproporcional aos tímpanos frágeis da alma enternecida. Alvoroço. Agitação. Alarido. As vozes miscigenavam-se entre gritos de socorro, ecos de alegria, dúvidas e convicções. Riso frouxo, lágrimas incontidas. A roda girando águas profundas, e o moinho socando pedras. Socando sonhos. Socando amor e uma coada de café para depois.
Caminhou devagar até encontrar a criança perdida nas sobras do teorema impresso na página trinta e sete. Números desbotados. Havia sangue sobre eles. Muito sangue. Sangue talhado, opaco, sem vida. Querendo despistar-se, ansiou novamente submergir, voltar ao farfalhar desconhecido. Em vão. Nenhum movimento mecânico era possível. Permaneceu dentro de si. Trêmula, toda a carne lhe doía. Dor imensuravelmente aguda.
Prostrou-se aos pés da criança, para velar desenhos coloridos sobre rascunhos bobos — listas das brincadeiras nas árvores, ou dicas de como andar sobre muros e telhados. Chorou. A criança sorriu. Um choro incerto. Um sorriso seguro. Titubeou por instantes incontáveis. Talvez seis mil anos, ou seis milésimos de segundos, não se sabe. Nunca soube. Silêncio.
O pires da anteaurora girou a xícara do café passado na tessitura existencial — a trama da vida enviesada sobre a escrivaninha. Íntegra, a criança se sentou na borda das pupilas, negras como a escuridão lá fora. Só então os olhos de Aurora puderam saber de onde provinha o ruído externo.
Ao se virar, roçando as asas com todas as forças do âmago, um pequeno inseto cruzou o espaço em voo de flâmula, aterrissando no teto. Era verde e estranho. Aurora não sabia ao certo do que se tratava. Era apenas um grilo, pensou. Precisaria matá-lo. Não suportaria mais tanto barulho, caso ele resolvesse cantar. Pegou o chinelo. A criança vendou com as mãos os olhos e destrancou a voz em desatino. O brado fê-la soltar a arma mortífera a fim de tapar os ouvidos doridos.
Então a verde esperança voou virtuosamente livre, como voam as crianças libertas do sono profundo nas corajosas madrugadas.
(Rúbia Garcia é advogada)