Opinião

Antropocentrismo e ecologia do cotidiano

Redação DM

Publicado em 22 de fevereiro de 2017 às 02:31 | Atualizado há 8 anos

Acredito ser necessária outra publicação do texto epigrafado, publicado 17 anos passados no jornal O Popular, se a memória não me falha, em 20 de agosto do ano 2000. Recentemente o publiquei nesse Diário. Que importa? Parece estranho se dizer que nesse final de milênio, o ser humano ainda precisa conscientizar-se que o meio ambiente, a educação e a preservação ecológica são uma obrigação individual. Por que não se fazer tudo como se tudo dependesse de cada um? A ecologia, antes da obrigação legal, é uma questão moral. Assim, seria inadmissível a passividade, a indulgência, a irresponsabilidade e a omissão diante das excessivas e constantes alterações ambientais causadas pelo chamado ser humano. O que fazer? Qual seria a causa? Creio tratar-se de questão político-ideológica polêmica, para não dizer teológica, fundada na doutrina antropocêntrica, principal responsável pela oposição criada entre o homem e a natureza, até conseguir transformá-la em objeto de sua dominação e exploração. Segundo o professor da PUC-Rio e Universidade Federal Fluminense, Carlos Walter Porto Gonçalves, a separação homem-natureza, cultura-natureza e história-natureza é uma característica do pensamento que tem dominado o chamado mundo ocidental, cuja matriz filosófica se encontra na Grécia e Roma clássica, sendo que com Platão e já se começa a assistir a um certo desprezo “pelas pedras e pelas plantas” e um certo privilegiamento do homem e da ideia.

Mas foi, sobretudo, com a influência judaico-cristã que a oposição homem-natureza e espírito-matéria adquiriu maior dimensão. Os cristãos vão afirmar decididamente que “Deus criou o homem à sua semelhança”. Como o cristianismo no ocidente, Deus sobe aos céus de onde, bem longe de nossas tretas e idiossincrasias, passa a agir sobre o mundo imperfeito de nossas misérias. É desse local privilegiado e estratégico que tudo vê e controla, sem conseguir, porem, que seus ensinamentos sejam pregados e efetivados como realmente os pensou e ensinou. Por isso, muitos dos seus “seguidores”, cheios de superioridade e orgulho, passaram a se separar cada vez mais dos ofídios, especialmente peçonhentos, da minhoca, das florestas, das águas, dos microorganismos e de outros bichos. Há mesmo uma crítica de que a tradição judaico-cristã é demasiado “antropocêntrica”, ao manter o homem muito egoísta como o centro absoluto do universo, sendo-lhe por isso destinadas todas as coisas, facilitando assim a dominação das mesmas, especialmente os recursos naturais.

O historiador Lynn White Jr., por sua vez, em um artigode1967, chega a afirmar que o livro do Gênesis desviou o rumo da cultura ocidental, utilizando-se dos recursos naturais, exclusivamente para seus propósitos egoístas. White fez um protesto em nome dos “peixes domar, pássaros do ar e de que o Gênesis nos incita a “dominar”. Por isso, muitos ambientalistas, ecologistas, ecólogos e outros pensadores tomaram o mesmo caminho ao julgar a Bíblia inimiga da sensibilidade ecológica, a favor de um capitalismo extrativista predatório. Em nossos dias, afirmam, qualquer visão religiosa deve ser “biocêntrica”, contrária, portanto, a corrente “humanista-antropocêntrica”, toda de características autoritárias indiscutivelmente egoístas. Assim, As acanhadas formas antropocêntricas da teologia tradicional parecem-me inadequadas, por não entrelaçar o destino humano com o da terra, exigindo, pois, uma nova dimensão teológico-filosófica e ecológica, como a corrente neo-humanista ecocêntrica, por exemplo, já que a ecosfera é mais abrangente do que os vegetais, os animais e outros seres vivos, de acordo com classificações mais recentes. Tirar-se-ia, assim, os humanos da condição excepcional de representantes absolutos do “centro do universo”, relativisando dessa forma a posição humana na natureza, ou diante da natureza, havendo de se misturar e respeitar os demais seres vivos, da muriçoca aos lagartos a que fala o escritor João Ubaldo Ribeiro.

Por que até agora, só temos destruído e dominado? Por que estamos sempre buscando e achando culpados, inclusive entre os animais, as plantas e outros descendentes do ambiente natural? Efetivamente, quase nada restou da imagem projetada, bem como da maravilhosa irradiação histórica deixadas pelo poeta Francisco de Assis, um dos Santos mais admirados do Ocidente, estabelecendo um profundo acordo de fraternidade e sororidade com a natureza a que se refere Leonardo Boff, “a ponto de chamar a todos os seres, desde a lesma do caminho até o sol e a lua, de irmãos e irmãs”.  Em que pese, por que não foi ouvido?

Essa visão parcelada, que opõe homem-natureza, ou o “mundo visível”, em oposição às ideias, sentimentos, emoções, etc., como nos ensina dicionário Aurélio, torna-se ainda mais completa como pensador René Descartes, mais especificamente através de sua obra Discurso Sobre o Método. Assim nasce a filosofia cartesiana, como centro do pensamento moderno e contemporâneo, do qual emerge o pragmatismo científico com sua marca utilitária e mercantil, onde o ser humano passa a ser visto e tratado, com maior ênfase, como o centro absoluto do mundo, acirrando ainda mais a oposição homem-natureza, espírito-matéria e sujeito objeto. Aí se inicia a sociedade industrial (meados do século 18), concentrada em grandes massas de trabalhadores assalariados, premunindo bem-estar crescente, trazendo maior mobilidade geográfica e social, fazendo uso de novas e incríveis descobertas técnico-científicas ao processo produtivo, aumentando a produção de massa e o crescimento do consumismo, aumentando ainda mais o egoísta e guloso princípio antropocêntrico onde o homem já é considerado rei e dono do mundo, dando pra se notar a arrogante proposição de Ronald Trump, podendo-se, inclusive, devastar, impunemente, a natureza, como realmente já conseguiu fazer em 200 anos da história moderna.

Ironicamente, foi como “dono do mundo” e em estado avançado de sua história que o” ser humano” desumanizou a natureza, sem humanizar-se; tornou-se civilizado, sem ser; separou o corpo da alma, sem compreender por que seria o privilegiado; foi o ungido, sem sentimento de piedade;induziu o desaparecimento dos deuses da natureza, conseguindo dessacralizá-la e transformá-la em objeto, podendo ser completamente dominada e até esquartejada. Assim, o “ser humano” nada teria de natural e seria somente animal social e cultural, conforme, aliás, prenunciara Aristóteles, estando portanto fora da natureza. Daí sempre se opor aos seres animados, separando-o do mundo animal e material.

No século 19, a Revolução industrial, construindo a cidade homônima, na qual Mineiros dá os primeiros passos, ainda evidencia maior força a essas ideias tornando marcante a oposição, a oposição, entre o “homem , a cultura,a história, de um lado, e a natureza, de outro”. Vê-se, assim, que a discriminação dos humanos, não importa em que nível, não existe somente contra os povos negros, os indígenas, as mulheres, etc. De tão presunçosos, passaram a discriminar também a natureza. E apesar de cheios de valores, cultos e civilizados, no seu dia a dia, passaram a tomar em sentido negativo os seres da natureza, particularmente os animais, evidenciando assim uma discriminação de ordem cultural bem típica contra a natureza, tomando como exemplo o tratamento pejorativo dado à galinha, fortemente assimilado e socializado no cotidiano. Assim, galinha é a mulher volúvel e que se entrega fácil. A que não se contenta em ter apenas um parceiro sexual. A pessoa fraca, covarde ou medrosa. “Minha dúvida é saber se eles preferem as garotas mais inteligentes e comportadas ou as mais galinhas”, diria uma jovem ao focalizar o tema da virgindade.

Imaginem o que dizem da piranha, com 15 espécies conhecidas no Brasil, peixe extremamente carnívoro e valente! Na gíria brasileira, não passa da mulher que, sem ser necessariamente meretriz, leva a vida licenciosa; piranhuda. Pistoleira, bocetinha.  Por que identificaram o abacaxi, planta de fruto tão saboroso, com tudo quanto é coisa trabalhosa, complicada,embrulhada, intrincada; ou coisa, pessoa desagradável, maçante, chata; dançador pesado, desajeitado e outros sentidos induvidosamente negativos? É estranho. Por que na tradição bíblica, a serpente, sobretudo a peçonhenta, é o mal insinuante e ardiloso, o caos? Pessoa má e traiçoeira, coisa nociva?

Porque a palavra bárbaro, que originalmente significa canto desarticulado das aves, desde os romanos passou a ser identificada com os não-civilizados, opondo-se, pois, ao que é da cultura? Selvagem, que quer dizer da selva, é também aquele que se encontra no pólo oposto da cultura. Assim, a natureza, em nossa sociedade, é aquilo que se opõe à cultura. Por irônico que pareça, foi com este conceito que a cultura, por ser superior, conseguiu controlar, dominar e violentar a natureza. E o porquê disso? Aliás, como enumera o competente professor Carlos Walter, a ecologia do nosso cotidiano é a seguinte:

“Chama-se de burro ao aluno ou a pessoa que não entende o que se fala ou ensina; de cachorro ao mau caráter; de cavalo ao indivíduo mal-educado; de vaca, piranha e veado àquele que não fez a opção sexual que se considera correta”.

 

(Martiniano J. Silva, advogado, escritor, membro do Movimento Negro Unificado (MNU), da Academia Goiana de Letras, IHGGO, Ubego, mestre em História Social pela UFG, professor universitário, articulista do DM, [email protected])


Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia

últimas
notícias