Opinião

A ciência de Sérgio Canela, que pegava fogo-apagou com a mão

Diário da Manhã

Publicado em 7 de fevereiro de 2017 às 01:13 | Atualizado há 8 anos

Sempre que ia à fazenda “Pintado”, no sertão da velha Conceição do Norte, meu pai munia-se de todas os remédios ne¬cessários para se prevenir do impaludismo, pois as enseadas do córrego do mesmo nome são até hoje famosas pela sezão que provocam.  Mas ele próprio sabia serem inúteis o quinino, a aralém e a metoquina, porque seu impaludismo era crônico.  Evitava ir ao Pintado nas épocas chuvosas, pois contava como certo cair de cama, com aquela fe¬brezinha rasteira e intermitente e a vontade de vomitar.

Forçado por um compromisso indelegável e sobretudo inadiável, teve que se ar¬riscar e foi superintender pessoalmente um serviço na fazenda, um reparo de cerca ou uma ferra, pra poder sortear a cria pro vaqueiro.

Caiu de cama – já era de se esperar.  Febre intermitente, moleza no corpo e uma vomitadeira que nada lhe parava no estômago: era cair dentro, e ele botava pra fora.  Tomou quinino, sumo de melão-de-são-caetano, infusão de casca de quina, e nada de pelo menos pa¬liar a do¬ença até criar forças para atravessar o sertão, subir a serra e alcançar o comércio pra caçar recursos.  Apesar daquela febre teimosa, que não atava nem de¬satava, e do corpo moído como de quem houvesse levado uma tunda, o que mais o incomodava era o vômito, que fazia o peito dolorido do enorme esforço.

Era vaqueiro o velho Sérgio Canela, que o fora de meu avô desde a passagem da Coluna Prestes pelo sertão assombrando e que gerara uma prole de negrinhos para exercer a vaquei¬rice, sempre serviçais e cheios de “inhô sim”, vaqueirando para gente ligada a nossa família.

Contava o povo que o velho Sérgio era tirado a mandraqueiro, rezador em qualquer macacoa, e diziam, até, que cobra que ele saltasse espichava ali mesmo, du¬rinha.  Abusão do povo ou não, desde menino ouvi muita gente dar testemu¬nho de verdadeiras as faculdades de “magnestimo” do velho Sérgio, que conheci pesso-al¬mente: negro retinto, usava fartos bigodões esbranquiçados, no feitio de um guidom de bicicleta. Mas nunca usou sua força pra fazer o mal. Dizem, até, que o menino Sérgio aproximava-se do pilão de limpar arroz e pegava com a mão as rolinhas fogo-apagou e pruvus que iam comer xerém, pois as bichinhas, como que hipnotizadas, não conseguiam alçar vôo.

Meu pai, embora profundamente religioso e respeitador da crença alheia, era meio cético com essas coisas de benzeções.  Mas não se opôs a que seu velho e servil vaqueiro, sempre jeitoso e cheio de “inhô sim”, benzesse um barbante de algodão e lhe amarrasse ao pescoço, à feição de um colar, com a recomendação de que não o ti¬rasse, pois ali fora amarrado para estancar o vômito.  Dentro daquela filosofia de que “quem está perdido não procura estrada” e como meu pai estava acamado e en¬tregue à moleza de corpo terrível, pouco ligou que lhe amarrasse qualquer coisa no pescoço, que dirá cordão.

Dias depois, já recuperado, creditou a estancação do vômito depois da amar¬ra-ção do cordão a uma coincidência ou mesmo ao efeito de algum dos remédios que vi¬nha tomando, pois ele, sinceramente, não alcançou na ciência do velho Sérgio qual¬quer indício que levasse à credibilidade de um cético que nem ele.

Acabado o serviço, juntou os trens, escanchou no burro de arreios e foi em-bora pro comércio, esquecendo-se da benzeção e do cordão bento, que, talvez por descuido, lhe fi¬cara no pescoço, já encardido de suor e poeira.

Já em casa, uma indisposição causada por alguma coisa mal comida começou a embrulhar-lhe o estômago, com aquela sensação de que o vômito aliviaria de vez.  Mas este não passava na garganta.  Tomou vomitórios, poaia, água morna e até me-teu o dedo na goela, mas o bafume no peito continuava agoniando-o, sem conseguir vomitar.

Aí, minha mãe lembrou-se da reza do velho Sérgio no cordão passado no pes-coço e sugeriu que retirasse.  Na angústia em que se achava, meu pai daria a vida e até um pe¬daço da alma para sair-se da incômoda situação.  Sentado na beira da cama, com os cotovelos enfincados nos joelhos e a testa apoiada nas mãos, estava completa¬mente entregue.  E com um gesto concordou, sem ao menos levantar-se:

– Se bem não fizer, mal é que não vai fazer. Pode tirar!

Foi o tempo de minha mãe desatar o nó: o vômito, há muito tempo contido e represado em lenta agonia, saiu em golfadas, que lhe lambuzou as calças, não lhe dando tempo nem de afastar as pernas para vomitar no chão.

Esse foi só um exemplo, que o velho Canela era capaz de muitas coisas inacre¬ditáveis.

Meu pai contava outro causo de um dente cariado que, vez por outra, era ex-comungado por doer, e, de certa feita, pegou-o desprevenido na fazenda, sem re-curso de remédio ou um ácido fênico para colocar num algodão e entupir a “panela” do dente pra dar volta na dor.  E, na servilidade de sempre, veio-lhe o velho va-queiro adjutorá-lo com suas meizinhas de magnetismo.  Rezou no dente, fez com a ponta da faca um círculo no chão (dizia meu pai que – não sabe se era im¬pressão – pa¬rece que no tocar na ferramenta no chão ele sentia uma pontada responder em redor do dente) e, com um raminho (ou um tição, nem me lembro), rezou, até a dor passar.

Dizia meu pai que daquele dia em diante nunca mais sentiu dor naquele dente.  Morreu com o toquinho do infeliz doedor, que chegou a desmanchar-se, mas, dor mesmo, só a lembrança.

 

(Liberato Póvoa, Desembargador aposentado do TJ-TO, Membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, Membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

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