Eles têm uma Justiça particular
Diário da Manhã
Publicado em 7 de fevereiro de 2017 às 01:05 | Atualizado há 4 meses
- Árbitros são ligados a empresas desse segmento e julgam, na esmagadora maioria dos casos, contra os consumidores
A 2ª Corte de Conciliação e Arbitragem de Goiânia é a instância escolhida pelas empresas do ramo de habitação para julgar demandas envolvendo assuntos relativos entre imobiliárias, condomínios e shopping centers. Deveria ser um instrumento de fomento da Justiça, porém advogados e consumidores criticam com dureza a atuação da CCA sob o argumento de que ela julga favorável somente às empresas ligadas ao setor.
Instalada por Ato do Tribunal de Justiça de Goiás através de um convênio firmado pelo TJ com a Ordem dos Advogados do Brasil – Secção de Goiás, a 2ª CCA tinha por escopo principal a mediação de conflitos para desafogar a Justiça, através da mediação e arbitragem. Em tese a coisa era para funcionar da seguinte forma. Duas partes têm um desentendimento sobre o assunto ou interesse que os envolve. Para não recorrerem à Justiça, eles pediriam a mediação de uma pessoa [em tese] isenta para analisar à luz do Direito com suas fontes (doutrina, jurisprudência, razoabilidade etc.) qual parte teria razão.
Mas, como muita coisa no Brasil, na prática a teoria é outra. A 2ª CCA funciona no prédio do Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis e dos Condomínios Horizontais, Verticais e de Edifícios Residenciais e Comerciais no Estado de Goiás – Secovigoiás, ou resumidamente Sindicato da Habitação do Estado de Goiás. No mesmo prédio, sob o mesmo teto, com a mesma composição e até o presidente é o mesmo. O empresário Ioav Blanche é o presidente do Secovigoiás desde o início de 2014, sucedendo Marcelo Baiochi, que se tornou seu vice e também é o presidente da 2ª CCA. Ioav é dono de um grupo de 22 empresas do setor imobiliário em Goiás e Distrito Federal com capital declarado de pouco mais de R$ 83 milhões.
Segundo a gerente da CCA, Giovana Ferro, a Corte promove uma atividade visando conciliações e se for necessário proferir uma sentença um árbitro é sorteado para estudar o assunto e proferir sua decisão, que em regra se torna título executivo, com força para ser executado. Pode ser um despejo de uma residência ou sala comercial, uma dívida estratosférica ou um lote que foi negociado entre uma imobiliária e um consumidor qualquer.
O detalhe mais importante que gera essa controvérsia toda é um pequeno dispositivo colocado nos contratos envolvendo imobiliárias, locadores e incorporadoras de que todas as demandas desse setor devem ter a CCA eleita como foro competente para dirimir todas as dúvidas. Acontece que essa cláusula no contrato, escolhendo o local onde deverá ser julgada qualquer demanda é ilegal, como já atesta toda a jurisprudência e os órgãos de proteção aos consumidores são unânimes quanto a isto. Mas, o consumidor que está comprando um imóvel ou alugando uma casa ou sala comercial em regra não sabe disso e cai feito um patinho na armadilha.
Negativa
O advogado André Soares Branquinho explica que na primeira audiência o consumidor pode dizer simplesmente que não aceita a CCA como instância para decidir a pendenga. Dito isto, a autora terá de ir para a Justiça comum, ou um Juizado Especial Cível para que um juiz de verdade, togado, concursado e investido na função judicante para mediar o conflito. Não um “juiz calça curta” como são conhecidos os árbitros da CCA.
Esses árbitros são, em geral, advogados que fizeram um pequeno curso de mediação e arbitragem e que são remunerados pelos perdedores da ação. Giovana Ferro, gerente da CCA, explica que a lei fala em valores que podem variar de 5% até 10% do valor da causa, mas que isso foi revisto por provimento do conselho da CCA para valores fixos, que variam de R$ 850,00 até R$ 5.450,00, em uma escala fixada por eles.
No ano de 2016 foram protocoladas 5.871 ações na 2ª CCA de Goiânia, em sua esmagadora maioria tendo como autoras imobiliárias e outras empresas do ramo, todas filiadas ao Secovigoiás. Ou seja, o sindicato que as representa patrocina uma corte de julgamento para dar sentenças e produzir ações executivas para elas mesmas cobrarem. Hoje a média de 80 audiências realizadas por dia na CCA e o índice de conciliação varia em torno de 72% das audiências realizadas.
Desconhecimento
André Branquinho atuou em uma determinada ação que revelou o grande problema que reveste a realidade da 2ª CCA e a relação promíscua entre empresas, órgão julgador e árbitros que proferem sentença. A empresa Carmo Empreendimentos vendeu um lote para Raimunda Lopes de Oliveira e depois repassou os contratos para Recanto do Bosque Empreendimentos Imobiliários. Raimunda, no curso de sua relação de consumo com quem lhe vendeu o imóvel foi, através de um advogado, para a Justiça com uma ação revisional, buscando reduzir valores de correção nas parcelas de seu financiamento. Chegou ao final com um saldo que a empresa, Recanto do Bosque, alegou que ela ainda devia uma soma.
Estava armada a balbúrdia jurídica. Raimunda foi acionada pela 2ª CCA para comparecer à primeira audiência. Como não foi alertada que poderia não aceitar a Corte como instância julgadora não falou nada. Esse silêncio lhe custou muito caro, porque não tendo acordo foi nomeado um árbitro para proferir a sentença. Acontece que o árbitro nomeado mediante um sorteio – que eles fazem questão de dizer que é um processo de lisura e transparência total – lascou uma decisão capaz de fazer corar qualquer professor de Direito que leia a peça.
O árbitro nomeado foi o advogado Eurípedes Balsanulfo Costa Ferreira Júnior. Em sua abantesmagórica decisão, ele ignorou fundamentos basilares do Direito, como amplo contraditório no exercício do direito de defesa, disse apenas que a consumidora devia para a empresa, mas não deixou que se produzisse prova pericial para dizer qual seria o real débito. Nessa decisão que beira a uma ópera bufa, ele revogou tudo o que a doutrina e jurisprudência estabelecem como parâmetros para uma ação rescisória, como a que foi movida pela imobiliária.
Mas, o pior ainda estava por vir. O dublê de árbitro e advogado esqueceu-se de informar que tinha uma relação estreita com a Carmo Empreendimentos, empresa que primeiramente vendeu o imóvel. Que tinha também uma relação profissional com empresas do setor imobiliário, o que no mínimo o colocaria como suspeito para julgar qualquer demanda nesse setor. Mas, para ganhar um dinheirinho extra, ele encarou a tarefa de julgar uma ação envolvendo uma imobiliária e, claro, deu-lhe ganho de causa.
O advogado André Branquinho foi para a Justiça comum e conseguiu um julgado primoroso no Tribunal de Justiça determinando que o assunto volte para a 2ª CCA e seja novamente julgada. O TJ não decidiu expressamente se Eurípedes Balsanulfo pode continuar na lide e se é ou não suspeito para julgar o feito. O certo é que os desembargadores disseram que sua sentença é teratológica e que dever ser integralmente refeita.
Ações como essa, com esse nível de decisões proferidas por “árbitros” altamente suspeitos, se sucedem e os pobres consumidores são os únicos lesados. Advogados são unânimes em afirmar que “ninguém maltrata a mão que o alimenta”. De resto, fica a dúvida se “somente quem paga os honorários consegue sentença favorável”. Outro advogado que já esteve dos dois lados do balcão brinca com um comentário. “Já tive bons resultados e grandes problemas ali. Do lado das imobiliárias que prestei serviço foi só alegria. Quando requerido ali só tive desgosto”.
A reportagem procurou o advogado Eurípedes Balsanulfo Costa Ferreira Júnior para se pronunciar. Em seu escritório a secretária disse que ele havia saído e que poderia retornar a ligação. Até o fechamento da edição, isso não foi feito.