A cidade conta
Redação DM
Publicado em 9 de abril de 2017 às 23:08 | Atualizado há 8 anosA cidade deve ser lida; aliás, como toda obra humana, deve ser traduzida, interpretada e revelada à luz de sua concretude. Não entenderá a cidade aqueles que feito cegos no deserto se agarram a misticismos toscos e massificadores, superstições ou crendices descoladas da carne aberta e do aço cortante de um cotidiano assumidamente rigoroso e multifacetado; cotidiano que, por sinal, só pode ser iluminado com as angulares muito bem afiadas do trabalho, dos seus processos e das relações que enceta e implica.
Mas qual é o vínculo entre cidade, trabalho e cotidiano? São relações, muitas, plenas, diversas e que se traçam, enlaçam e entrelaçam em harmonia plena e duvidosa, em fluxos perenes e oscilantes, em série, cadeia ou em tempos e dinâmicas pausadas.
A cidade e sua pletora de contradições revela antes, o trabalho, sua qualidade e respectiva potência política. Não há nada de inocente, casual ou despropositado na paisagem urbana. O desajuste da rua, o bairro irregular e mal construído, o serviço público precário e insuficiente, o controle e a coerção policial sobre multidões de pobres e miseráveis, a indiferença sempre cínica e sorridente dos que dizem governar a cidade, a esfera público-administrativa que é carcomida ferozmente por um setor privado desprovido de qualquer ética ou moral pública são manifestações objetivas que demonstram o “não-ser” da cidade.
Um “não-ser” histórico, de matrizes e raízes coloniais, escravocratas, racistas, facciosas e classistas. Um “não-ser” que é paralelamente a negação do humano e de sua atividade de maior determinação: a possibilidade e realização de trabalho e, por conseguinte, a fundação de um novo padrão societário onde um privado de tipo novo se firma como negação de tudo o que é social, coletivo, comum e público e é desta maneira, elevado à condição de conceito, horizonte, referência, exercício e pratica convival.
O “não-ser” urbano está nos amiúdes da cidade, em suas carências e exuberâncias. Em sua organização espacial e territorial; nos seus sub-territórios e no surgimento automático da “outra cidade”; informal, ilegal, anômica e onde o crime é relativizado e aquilo que é por assim dizer, legal estabelece coexistência notadamente harmônica com o delito, a contravenção e a barbárie. São dimensões, aspectos e possibilidades que ao seu modo e estilo revelam as encarniçadas e plenas contradições que cortam e transversalizam o urbano do capital de ponta a ponta.
O cotidiano advindo desta organicidade é totalidade descontínua, segmentada, fracionada e que por sua vez, fraciona o trabalho e consequentemente aquele que o realiza: o trabalhador.
O que vem dessa lógica dispersiva é a ignomínia de indivíduos igualmente fragmentados não só em suas ocorrências cotidianas onde são “quase trabalhadores”, “quase intelectuais”, “quase família”, “quase convívio”, “quase ação política”, “quase transformação”, “quase homens” mas também e tragicamente, no desiderato épico de reconstruir a cidade sob o signo da justiça, da liberdade e da igualdade. É o melancólico e odiento rescaldo sócio-político sobrante para os mesmos que fazem permanentemente a cidade com o labor diário.
Como superar essa hecatombe societária? Essa desgraça que por sinal, elimina fisicamente milhões de gentes do povo? Ora… Por meio do exercício livre e autônomo da política; concebida conscientemente pelas maiorias de trabalhadores orgânicos e organizados e que devem avançar integrados e unitários para o controle do estado e de suas instituições afundadas no vicio decadente e pequeno-burguês da negação do trabalho.