Dois momentos proustianos no cinema
Redação DM
Publicado em 9 de abril de 2017 às 22:40 | Atualizado há 8 anos
O crítico norte-americano, Harold Bloom, é um leitor voraz e bem acima da média. Aprendeu diversas línguas com a finalidade de ler os seus clássicos literários no original. Digno de nota é o seu esforço para aprender o português escrito no século 19 no Brasil para ler Machado de Assis sem os percalços sempre comentados da tradução. De seu esforço, a constatação de que o criador de Capitu é o maior nome literário afrodescendente da história, não somente em nosso país, mas em todo o mundo.
Sobre outro gigante da literatura brasileira, Guimarães Rosa, Bloom afirma lamentar não dispor de mais tempo (encontra-se em idade avançada) para estudar e aprender a língua literária criada por Rosa para vestir a sua narrativa do colossal “Grande Sertão: Veredas”. Em entrevista à imprensa brasileira há alguns anos, Harold Bloom, um dos maiores conhecedores da obra shakespeariana, que lecionou em Yale por quatro décadas consecutivas sobre o poeta e dramaturgo inglês, menciona ter começado a ler o romance rosiano em uma tradução inglesa. Porém, percebeu logo de início quão sofrível era a transposição linguística, que parecia reduzir “Grande Sertão: Veredas” a um bisonho faroeste, o que o levou a abandonar a leitura.
Há obras literárias concebidas com um grau de genialidade tão extraordionário, que a sua transposição para outra língua ou mesmo outra plataforma de manifestação, como o cinema por exemplo, exigiria uma correspondência no gênio por parte de tradutores, roteiristas e diretores para que pudessem ficar num patamar semelhante a seu suporte de origem, o livro. Uma exemplificação disso é a sequência de romances que se desdobra sob a epígrafe maior de “Em Busca do Tempo Perdido”, do escritor francês Marcel Proust.
A narrativa profundamente psicológica e detalhada que Proust estabelece em torno de minúcias da vida de seus personagens faz imaginar que a sua transposição para as telas do cinema é uma tarefa quase impossível. Quem pudesse realizá-la com o sucesso alcançado por um blockbuster, certamente seria dotado de uma capacidade narrativa semelhante ao do notável escritor. Tentativas já foram realizadas, aqui e ali, mas nada que tenha sua equivalência com os sete volumes da obra literária.
Enquanto se aguarda uma grande produção digna do romance proustiano, pode o espectador contentar-se com referências intertextuais esparsas em produções das mais diversas categorias e qualidade, o que denota a admiração que o autor desperta mesmo naqueles que estejam produzindo algo de menor relevância estética no âmbito da cultura.
PROUST EM
REFERÊNCIAS
Em Ratatouille, animação de 2007 dos estúdios Pixar, dirigida por Brad Bird, é apresentada a curiosa história de um ratinho com extraordinários dons culinários. Utilizando-se de um humano, que funciona como se fosse uma espécie de médium seu, o ratinho Rémy encanta os fregueses de um restaurante que estava à beira da falência com seus pratos extremamente saborosos. A fama se espalha e, em determinada ocasião, o maior crítico de gastronomia de Paris visita o restaurante para escrever sua coluna para o importante jornal parisiense em que trabalha.
Ao degustar o prato que é preparado por Rémy, o crítico se desarma de sua carranca e postura autoritária, pois os sabores têm o dom de fazer com que suas agradáveis reminiscências de infância venham todas à tona, levando-o de volta a um tempo em que era muito feliz, sem as preocupações próprias da vida adulta. A cena intertextualiza de forma admirável as impressões do narrador proustiano no primeiro volume de “Em Busca do Tempo Perdido – No Caminho de Swann”, onde se lê:
“Fazia já muitos anos que, de Combray, tudo que não fosse o teatro e o drama do meu deitar não existia mais para mim, quando num dia de inverno, chegando eu em casa, minha mãe, vendo-me com frio, propôs que tomasse, contra meus hábitos, um pouco de chá. A princípio recusei e, nem sei bem porque, acabei aceitando. Ela então mandou buscar um desses biscoitos curtos e rechonchudos chamados madeleínes, que parecem ter sido moldados na valva estriada de uma concha de São Tiago. E logo, maquinalmente, acabrunhado pelo dia tristonho e a perspectiva de um dia seguinte igualmente sombrio, levei à boca uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço da madeleíne”.
Prossegue o narrador:
“Mas no mesmo instante em que esse gole, misturado com os farelos do biscoito, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem a noção de sua causa. Rapidamente se me tornaram indiferentes as vicissitudes da minha vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, da mesma forma como opera o amor, enchendo-me de uma essência preciosa; ou antes, essa essência não estava em mim, ela era eu. Já não me sentia medíocre, contingente, mortal. De onde poderia ter vindo essa alegria poderosa? Sentia que estava ligada ao gosto do chá e do biscoito, mas ultrapassava-o infinitivamente, não deveria ser da mesma espécie. De onde vinha? Que significaria? Onde apreendê-la? Bebi um segundo gole no qual não achei nada além do que no primeiro, um terceiro que me trouxe um tanto menos que o segundo. É tempo de parar, o dom da bebida parece diminuir. É claro que a verdade que busco não está nela, mas em mim. Ela a despertou mas não a conhece, podendo só repetir indefinidamente, cada vez com menos força, o mesmo testemunho que não sei interpretar e que desejo ao menos poder lhe pedir novamente e reencontrar intacto, à minha disposição, daqui a pouco, para um esclarecimento decisivo”.
Com menos intensidade que a referência de “Ratatouille”, porém mais próxima no tempo, já que o filme ainda se encontra em cartaz em algumas salas de exibição, há uma curiosa correspondência em Proust com o enredo de “A Bela e A Ferda”. A recente produção da Disney é a versão com atores para o clássico desenho. Com direção de Bill Condon, a narrativa gira em torno de um príncipe soberbo que é amaldiçoado por uma bruxa, transformando-se em uma criatura monstruosa. Somente o amor verdadeiro – que receberá da Bela – poderá restaurá-lo à normalidade. Juntamente com o príncipe, seus criados são também transformados em objetos do castelo, como candelabros, xícaras, armários, etc.
Neste caso, a correspondência com“Em Busca do Tempo Perdido – À Sombra das Moças em Flor” é mais sutil, escorando-se na figura de linguagem denominada prosopopeia ou personificação, que se caracteriza pela concessão de atributos humanos a animais e a seres inanimados. O narrador proustiano comenta sobre objetos que herdara de uma tia algo beata, que ele repassa a uma amiga dona de um bordel. O leitor-espectador perspicaz, que contemple ambas as narrativas, fará a correspondência necessária. Escreve Proust no segundo volume do grande romance:
“Aliás, deixei de ir a esse bordel porque, desejoso de testemunhar meus bons sentimentos à dona da casa, a qual necessitava de móveis, dei-lhe alguns, notadamente um grande canapé que herdara de minha tia Léonie. Não os via nunca, pois a falta de espaço impedira meus pais de acomodá-los em casa e eles achavam-se amontoados num depósito. Mas, desde que os encontrei na casa onde aquelas mulheres deles se serviam, todas as virtudes que se respiravam no quarto de minha tia em Combray, pareceram-me como que supliciadas pelo contato cruel a que os entregara sem defesa! Tivesse eu violado uma morta, não teria sofrido mais. Não voltei à casa da alcoviteira, pois eles pareciam-me viver e suplicar, como os objetos aparentemente inanimados de um conto persa, nos quais estão fechadas as almas que sofrem um martírio e imploram sua libertação”.
Ou seja, enquanto “Em Busca do Tempo Perdido” aguarda uma adaptação à altura de seu portento literário, o espectador pode contentar-se com referencialidades intertextuais mais ou menos acentuadas em torno da magnífica obra de Marcel Proust.