Opinião

Tributo a João Neder, misto de Cícero e Demóstenes

Redação DM

Publicado em 4 de abril de 2017 às 01:24 | Atualizado há 8 anos

Há pessoas que, ao morrerem, são sepultadas. Mas existem aquelas que, pelo que desempenharam em vida, foram semeadas, pois seu exemplo precisava germinar.

Refiro-me ao grande representante do Ministério Público João Neder, cuja história deitou raízes no exemplo de homem probo, intelectual, que soube sair-se magistralmente em todas as áreas em que atuou: como Promotor de Justiça, era o terror das defesas, pela segurança com que defendia o libelo acusatório, sem descer às baixarias de que muitos se utilizam para tripudiar sobre o acusado; como advogado, soube aplicar com maestria sua imensurável experiência na chamada “magistratura de pé”.

Com ele tive efêmera convivência, quando, em 1993, foi meu patrono numa causa em que combatia os desmandos de um ex-governador tocantinense, mas muito aprendi com seu “modus operandi”, e sobretudo hauri dele que quando se tem o escudo da razão não se deve temer enfrentar os desmandos. E naquela época, fui seu cliente, juntamente com seu jovem e ainda iniciante filho, Alex, e sua esposa, Beatriz, que me foram fundamentais na lição do destemor.

João Neder, apesar de mineiro de nascimento, veio frutificar em Goiás, onde deixou o exemplo de honradez e sobretudo coragem, qualidades com que me identifiquei.

Radialista, com passagem pela Rádio Brasil Central, jornalista, que colaborou com Batista Custódio na criação do “Cinco de Março” (embrião do “Diário da Manhã”), líder estudantil e presidente do Diretório Acadêmico “XI de Maio” da UFGO, que ajudara a criar, com ideias socialistas, o que anos depois seria uma subversão: combater o errado, fosse quem fosse o autor.

Mercê de sua natureza que respirava contestação, sofreu enormes perseguições por parte dos mandatários da época. Durante a ditadura, o jovem advogado João Neder foi detido 22 vezes. Em uma delas, prenderam-no em frente ao hospital no qual o filho, Alex, havia acabado de nascer. João foi um estudante de ideias socialistas, pensamento compartilhado por muitos dos colegas na faculdade de Direito em Goiânia.

Advogava e depois trabalhou com Drª Beatriz no Idago, mas logo as perseguições políticas fizeram-no perder o emprego junto com a esposa, e tornou-se preso político, mas, homem aguerrido e pertinaz, encarando sem medo a situação e enfrentando as adversidades, prestou concurso público para Promotor de Justiça, sendo aprovado em primeiro lugar.

Como promotor, palmilhou todo o Estado de Goiás e inclusive atuou, sempre com brilhantismo, em comarcas do hoje Tocantins, notabilizando-se como grande tribuno perante o Tribunal do Júri, atuando sempre em casos notória repercussão, não se tendo notícia de haver perdido uma só batalha de sua retórica; pelo seu temperamento forte, sempre defendia com unhas e dentes suas ideias, sendo considerado como o melhor Promotor de Justiça do Estado de Goiás.

Sua atuação perante o Júri era tão marcante, que no salão onde se desenrolava um julgamento em que ele atuava os lugares eram disputados como se disputa hoje um lugar num concerto de ópera ou num “show” de alta importância musical.

Jornalista de escol, foi articulista por mais de uma década no “Diário da Manhã”, onde seus artigos, dada a profundeza de seu conhecimento, foram transformados em livros, como “Um Promotor na Carruagem”, “De cabo de esquadra a marechal de guerrilha”, e “Histórias da rua vinte”.

Um dos poucos columbófilos conhecidos, seu passatempo era criar pombos-correio para competição, chegando a ter 300 aves e a ser recordista mundial de distância percorrida com um dos pássaros, que voou mais de mil quilômetros.

Mas o melhor e mais combativo guerreiro um dia se cansa, e de tanto ser perseguido por governantes, já com tempo para se aposentar, optou por retornar para iniciativa privada, voltando advogar em 1984 com a esposa, Beatriz Neder, e o único filho, Alex Neder, que ficaram, e com razão, conhecidos como o “trio parada dura”, com atuação firme, constante e destemida; seu escritório era (e ainda hoje é) referência no Estado, e sua desenvoltura na advocacia, principalmente perante o Tribunal do Júri, lembrava Demóstenes, lá no Século IV a.C., na defesa de Atenas contra Filipe II da Macedônia e seu filho Alexandre Magno, ou Cícero, combatendo Catilina no Senado de Roma.

Passadas as dificuldades criadas pela situação política, a advocacia do maior tribuno de Goiás – e quiçá do Brasil -, o seu barco saiu das tempestades e passou a singrar águas tranquilas a partir de 1985, quando os advogados goianienses tiveram o privilégio de conviver com o maior tribuno de Goiás, homem de uma cultura vastíssima, jurista  de peso e de uma coragem pouco vista, que se foi aos oitenta anos, em julho de 2014, vítima de um câncer, contra o qual lutava bravamente, mas, mesmo doente, quando podia, advogava e fazia sustentações orais nos tribunais, e até Tribunal do Júri, demonstrando, até à morte, grande exemplo de tenacidade e resiliência como nunca vistas, não  deixando grande patrimônio material, mas uma preciosa herança cultural, de honradez e, como diz seu próprio filho, Alex,  “ensinou-me a pegar o peixe, e me disse que eu deveria saber pescar, porque seria pai de família e deveria estudar, e me preparar porque ninguém colocaria azeitona na minha empada”.

Mas um dia a vida se acaba, e o nome fica, e João Neder voou para a eternidade, como que levado pelas asas de seus adorados pombos, para novas competições em outra esfera, pois seu corpo ficou, mas seu espírito guerreiro permanecerá para sempre.

 

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])


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