Opinião

A arca de Noé, a lei de Maquiavel ao contrário

Redação DM

Publicado em 28 de janeiro de 2017 às 01:12 | Atualizado há 8 anos

Certa ocasião, li um extenso artigo do “Overall Corporation Management and Business”, que caracteriza o que chamamos de antilei de Maquiavel: os meios justificam o fim e que mostra os malefícios da burocracia. Em resumo, adaptando-se os fatos para os dias de hoje, era mais ou menos assim:

Um dia, estando Absalão, homem justo dos tempos mosaicos, absorto numa ravina, eis que um clarão, seguido de uma nuvem de fumaça, anunciou o aparecimento do Senhor, cuja voz divina tonitroou, chamando-o.

Perplexo, Absalão limitou-se a ouvir o Criador, que se disse muito contrariado com a criação do mundo e queria uma nova humanidade: obediente, inteligente, perfeita. E anunciando que faria cobrir o universo com um dilúvio, escolhera-o como semente de nova Humanidade, ordenando-lhe que, dentro de quatro meses, construísse um barco e nele entrasse com a família e um casal de cada ser vivo. Di-zendo isso, sumiu.

Chegando em casa, Absalão rebuscou a memória e lembrou-se que conhecia um tal de Noé, engenheiro naval, que imediatamente foi recrutado como elemento técnico, pois Absalão se reservou a presidência da empresa que acabara de criar para construir o barco.

Logo de início, sentiu a necessidade de comprar madeira e contratar pelo menos dez carpinteiros. Veio a ideia de contratar gente para realizar a licitação, montar um Departamento de Pessoal e um de Treinamento para selecionar dez carpinteiros. Um amigo, Roboão, que fizera a seleção de lanceiros durante uma guerra santa, foi o escolhido para cuidar do recém-criado Departamento de Pessoal. Este achou pouco o número de carpinteiros e aumentou para quinze, e, no dia seguinte, cinco homens, contratados especialmente, já apregoavam no povoado que o recrutamento se iniciara.

Como Roboão era especialista em pessoal, não devia mexer com numerário; e criaram uma Gerência Financeira, nomeando um tal de Judas, excessivamente apegado ao dinheiro, que, certamente, garantiria a austeridade de empresa, que iria de vento em popa.

Absalão conversava com Jacó, o recém-nomeado Diretor de Material, sobre a criação de um almoxarifado para armazenar a madeira, quando a graciosa secretária anunciou que Noé estava ali com uns desenhos para aprovação do presidente. Absalão respondeu secamente:

– Fale com o Dr. Noé que marque audiência para uma outra hora! Estou em reunião! – e voltou-se para o Diretor de Material, Jacó, recomendando-lhe que contratasse um almoxarife e pessoal de apoio.

Interrompendo, mais uma vez, a reunião, a graciosa secretária anunciou que estava ali o senhor Job, Secretário-Executivo, com um relatório confidencial mandado pelo Chefe de Segurança, Gau. A reunião foi suspensa imediatamente para ser lido o documento, que desaconselhava a contratação de certos nomes, tidos como perigosos, consoante informes do serviço secreto da empresa.

Quinze dias esperou Noé a audiência, sempre adiada. Por fim, quando a empresa já havia criado uma série de Diretorias (Pessoal, Material, Logística, In-vestimentos, Patrimônio, etc.) e diante da insistência de Noé em aprovar os projetos do barco, Absalão mandou dispensá-lo sumariamente, sob a alegação de que entrara irregularmente na empresa e, ainda por cima, estava numa impertinência inadmitida:

– Estamos cuidando de coisa séria, e vem esse Dr. Noé confundir as coisas com detalhes de projetinhos de barco! Já instituí o Grupo de Trabalho do Barco (GT-BAR) para cuidar disso. Ele está demitido! Que passe no Departamento de Pessoal e veja seus direitos! Se chiar, que constitua advogado!

No 40º dia conseguiram fazer a primeira reunião da Direitoria completa, regada a leite de cabra; no 80º dia já com 1200 servidores, encomendaram a madeira, que dias depois foi recusada pelo Controle de Qualidade da empresa.

E passeando na ravina, Absalão foi surpreendido pelo reaparecimento do Criador, que estava ali para cobrar-lhe o barco. Voltou à empresa e fez nova reunião com a Diretoria, mandando contratar mais gente. Faltando 30 dias para findar o prazo, Absalão passou um whatsapp para o Criador, pedindo prorrogação de prazo; foram concedidos mais cinco dias. No corre-corre, enquanto Noé, demitido, seguiu com cinco companheiros, que nem carpinteiros sindicalizados eram, para fazer por sua própria iniciativa o barco, Absalão preocupava-se em identificar um tal de Plúvio, de que a Segurança tivera informes de ser a causa da agitação toda por que passava a empresa aqueles dias.

Faltavam cinco dias para o Dilúvio, e nada tinham realizado, pois com a invenção da greve, a empresa estava parada, e a instituição das mordomias, somada à revolta dos servidores com o Plano de Classificação de Cargos, levavam os funcionários a bater o ponto e sair para atender a outros empregos que acumulavam. Choveram mensagens de whatsapp.

O céu estava carrancudo. As nuvens ameaçavam desabar. Nova mensagem de whatsapp, alegando dificuldades insuperáveis, pedia prorrogação de prazo ao Criador. A resposta foi imediata: negativo!

E começou a chover. No dia fatal, com as dependências da empresa inteiramente alagadas, Absalão reuniu a Diretoria para decidir a situação.

Não deu tempo: antes de se afogarem, só tiveram tempo de ver passar, descendo a correnteza, um enorme barco, em cuja proa conseguiram ler: “Arca de Noé”.

Na prática, estamos convivendo neste Brasil com muitos Absalões, que continuam seguindo à risca essa lei… mas com dinheiro dos outros.

 

(Liberato Póvoa, Desembargador aposentado do TJ-TO, Membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, Membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

Tags

Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia

últimas
notícias