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Toca Raul, mas sem raulseixismo

Redação DM

Publicado em 4 de maio de 2018 às 22:12 | Atualizado há 5 meses

Vivemos a toque de caixa, como diria aquela triste fra­se “time is money”. E não se trata de grana pra ostentar só pra sobreviver mesmo. O modo como consumimos as coisas é frenético e isso chega até na arte que é degluti­da. Colocar um disco pra tocar e ter a experiência de apreciar essa obra é uma raridade. Geralmente o que rola é colocar um som em uma pla­taforma digital e deixar que o algo­ritmo sugira a sequência enquanto fazemos outras coisas. No intuito de relembrar o prazer de ouvir um dis­co todo e sacar o conceito na junção das canções, chega mais uma edi­ção do projeto Vinil Vivo.

A ArmaZen Produtos Culturais e a Toca Coletivo apresentam o se­gundo Vinil Vivo na Nova Toca, ago­ra no Jardim América. O convidado desta vez é o artista goiano Diego Mascate e banda. O músico inter­preta o clássico álbum do grande Raul Seixas Novo Aeon, de 1975, além de outras músicas marcan­tes desse ícone do rock nacional. Os DJ’s Macambira e Cascavél vão comandar o esquenta com duas vi­trolas e um monte de vinis que es­tarão à disposição da galera, já que na Toca quem comanda o setlist são os convidados. Os DJs apenas serão os colocadores de vinis. É a Toca vol­tando ao tempo do bom bate-pa­po na escolha de músicas no vinil.

O Mascate nos conta a respeito do projeto e a escolha do disco: “O projeto se chama Vinil Vivo. É uma idealização do Kleuber Garcez, que também é meu parceiro na banda Pó de Ser. Ele tem feito esse evento há algumas edições, já produziu no caso o disco Acabou Chorare do No­vos Baianos com a Luciana Clíma­co e banda, agora eu vou fazer com o disco Novo Aeon. Já tinha feito no ano passado com o disco Krig-ha, Bandolo!, o primeiro do Raul de 1973 e agora vou fazer esse que é de 1975”.

NOVO AEON

Diego analisa os aspectos do Novo Aeon que o ligam a este ál­bum: “É um disco muito interes­sante, ele tem vários ritmos bra­sileiros, muito rock’n roll e letras bem críticas. Tem algumas contra­dições também, observo que nes­te disco o Raul acende uma vela pra Deus e outra pro Diabo. Na primei­ra música, que é Tente outra vez, ele fala: “Tenha fé em Deus, tenha fé na vida”, e na segunda faixa ele fala que o diabo é o pai do rock. Dentro do disco ele também faz uma provo­cação ao rock, que ao meu ver, em uma faixa que mantém uma certa atualidade, a música se chama A verdade sobre a nostalgia, nela ele diz: “Tudo quanto é velho eles bo­tam pr’eu ouvir e tanta coisa nova jogam fora sem curtir.”

Diego explica que a ideia da apresentação é ultrapassar aque­le velho “Toca Raul!”, mostrando versões trabalhadas pela banda e ressaltando a essência do disco: “Até brinco que essa música pode­ria ser atualizada inclusive contra o próprio raulseixismo, que fica pre­so no passado. Minha ideia então é fazer uma homenagem ao Raul, mas a esse espírito libertário dele, não ser apenas um show de cover. São nossas versões, recriando as músicas com a banda e tentando mostrar a vitalidade desse disco, como ele continua forte.”

Este disco de 75 era um trabalho pelo qual Raul Seixas tinha muito apreço e seu parceiro musical Mar­celo Nova também. “Era o disco fa­vorito do próprio Raul, embora não tenha sido o maior sucesso de ven­das, como o Gita, ou o próprio Kri­g-ha, Bandolo!” Era o que ele mais gostava da discografia dele, quem conta isso é o Marcelo Nova. Uma vez o Marcelo Nova fez um texto pra seção Discoteca Básica da Re­vista Bizz, uma seção muito im­portante que sempre chamava um artista pra indicar um disco. O Mar­celo Nova, em 92, fez o texto falan­do deste disco. Nele ele menciona que era o que o Raul mais gostava mesmo que não tenha feito tanto sucesso”, conta Diego.

Novo Aeon não foi o maior su­cesso de público de Raul, mas Die­go relata que é um disco diverso que passeia do lirismo anárquico a so­noridade do brega: “Tem algumas músicas desse disco, por exemplo, que ela foi fazer sucesso depois que o disco foi lançado, como Tente ou­tra vez, alguns anos depois que ela foi fazer sucesso no rádio. Tem de tudo no disco, tem A maçã, que fala de amor livre, tem Eu sou egoísta, que traz um sentido um tanto quan­to anárquico, bem filosófico. “Tu És o MDC da Minha Vida” que é um deboche com a sonoridade da mú­sica brega, inclusive o Raul era um produtor de artistas bregas, antes de ser o Raul Seixas, ele era o Raulzito, produziu Jerry Adriani, Diana e até no primeiro disco do Odair José tem uma música do Raulzito. Ele domi­nava muito essa linguagem da mú­sica popular, que o povão gosta. E depois da carreira solo dele, já como Raul Seixas, ele vai trazer essa sono­ridade popular, mas com letras re­flexivas e isso é muito interessante”.

“Acho que esse projeto, o Vi­nil Vivo, é muito bacana pra des­pertar as pessoas a ouvirem o dis­co e o pensarem enquanto uma obra. A gente vive hoje um mo­mento na música que muita gente escuta as músicas de uma maneira fragmentada, como no spotify, que não aparece nem o compositor ali, elas escutam sem se atentar mui­to ao disco. Paradoxalmente hoje temos a volta do vinil, estão pren­sando novamente vários discos, mas diria que esse é um merca­do um tanto quanto segmentado, porque a maior parte das pessoas não escuta discos fechados, escuta singles, mas é legal também, pois existem diversas formas de fruir a música. Mas o legal do projeto é isso, ver o disco como uma obra, um conceito”, encerra o músico a respeito do projeto.

 

TEXTO DO MÚSICO MARCELO NOVA A RESPEITO DO DISCO NOVO AEON PARA A SEÇÃO “DISCOTECA BÁSICA” DA REVISTA BIZZ, PUBLICADO EM 1992:

No verão de 89, Raul Seixas e eu estávamos em minha casa prepa­rando material para o disco A Pa­nela do Diabo, quando ele falou: “Marceleza, vamos dar um tem­po nessa paranoia de compor e to­mar uma cervejinha.” Fizemos uma pausa, quando coloquei para to­car o seu álbum Novo Aeon e dis­parei: “De todos os discos que você fez, este é o meu favorito.” Para mi­nha surpresa, ele rebateu: “O meu também!”

À medida que as músicas ro­lavam, ele ia me dizendo que, ao contrário do sucesso de Krig-Ha Bandolo (72), com Ouro de Tolo e principalmente Gita” (74) – que vendeu algo em torno de oitocen­tas mil cópias, puxado pela faixa­-título –, Novo Aeon não havia ul­trapassado as quarenta e poucas mil. Mas se o álbum frustrou as ex­pectativas da gravadora, ao mesmo tempo tornou-se uma espécie de querido filho bastardo para Raul.

Realmente, este é um disco fi­lho da puta de bom. Se Raulzito sempre foi, antes de tudo, um ho­mem de textos, eles nunca estive­ram tão afiados, sarcásticos e inten­sos como em Novo Aeon. O disco é aberto com Tente Outra Vez, balada que exorta os perdedores e deses­perados a voltar à luta: “Tente/Le­vante sua mão sedenta e recome­ce a andar/Não pense que a cabeça aguenta você parar.”

Entre o dramático e o patético, ela nos conduz a uma obra-prima da parceria de Raul com o letrista Paulo Coelho – o Rock do Diabo. Temido e odiado no senso comum, o velho demo é visto aqui não só como um integrante da mesma gangue (“O diabo usa capote/É rock, é toque, é fuck…”), mas como alguém que pode sintetizar a com­plexidade da psicanálise em uma simples ação (“Enquanto Freud explica as coisas/O diabo fica dan­do os toques”). Cantando que “O diabo é o pai do rock…”, Raul reve­la uma intimidade com o assunto que remete ao bluesman Robert Johnson – que em 1936 afirmava “andar lado a lado com satã” em Me And The Devil Blues.

Enquanto o disco rola, surgem os temas mais imprevisíveis. Tu és o MDC da Minha Vida traz uma melodia que costura Orlando Dias e Odair José, enquanto a letra – ou­tra parceria com Paulo Coelho – vai levando a situações hilárias através de seus versos impossíveis: “Eu me lembro/Do dia em que você en­trou num bode/Quebrou minha vitrola e minha coleção de Pink Floyd.” Quem senão Raulzito ou­saria tal rima?

Em outras duas canções, ele flagra os impasses e as contra­dições que se abateram sobre sua geração no início dos anos 70. No Rock’n’Roll de A Verda­de Sobre A Nostalgia declara que “Mamãe já ouve Beatles/Papai já deslumbrou/Com meu cabe­lo grande eu fiquei contra o que eu já sou”. Já É Fim de Mês traz em ritmo de baião uma abordagem semelhante (com uma alusão a Os Panteras, o primeiro grupo de rock de Raul, em Salvador): “Já fui pantera, já fui hippie, beat­nik/Tinha o símbolo da paz de­pendurado no pescoço/Porque nego disse a mim que era o ca­minho da salvação.”

Mas um dos momentos mais emocionantes do álbum está na canção Para Nóia, em que a cria­ção católica de Raul desaba com toda sua avalanche de culpas, te­mor a Deus e vergonha da mas­turbação (“Minha mãe me disse há tempos atrás/Deus vê sem­pre tudo que Ôcê faz/Mas eu não via Deus/Achava assombração… Vacilava a ficar nu lá no chuvei­ro, com vergonha/De saber que tinha alguém ali comigo/Vendo fazer tudo que se faz dentro de um banheiro…”).

Um disco inquieto, apesar de maduro. Às vezes cínico, mas sempre perturbador. Novo Aeon contém toda a grandiosidade es­tética e poética de Raul. Um ar­tista que, em vida, fazia questão de polemizar e desprezar o insos­so “novo rock brasileiro” e por ele era ignorado. Agora, quase três anos após sua morte, alguns dos “artistas” que o “homenageiam” mal conhecem o trabalho dele, mas parecem “topar tudo” por di­nheiro. Não se deixe enganar e vá ao original.

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