Opinião

“Coisas da Bahia e alguns poemas”, um livro para se ler e guardar

Diário da Manhã

Publicado em 7 de janeiro de 2017 às 01:28 | Atualizado há 8 anos

Que Tasso era um Demóstenes, todos nós da nossa terrinha sabiam, tendo, inclusive, sido o orador da primeira turma formada no saudoso “Ginásio João d´Abreu”, de Dianópolis em 1955; também todo mundo sabia que sempre pontificou como um dos primeiros de sua turma, também todo mundo sabia, a ponto de nosso intransigente padre Magalhães viajar e deixá-lo em seu lugar como professor dos próprios colegas; que ele era um acordeonista de primeiríssima linha, fiquei sabendo depois, e, embora o tenha assistido manejar o acordeon, seu instrumento de paixão, uma única vez e ligeiramente, num boteco no Guará, em Brasília, os depoimentos de Chiquinho e outros músicos temporões avalizam seu virtuosismo.

Mas, mercê desse tal de zape-zape, que a gente é forçado a reconhecer como ferramenta de aproximação das pessoas, voltei ao contato com ele depois de mais de quarenta anos, depois que Tezinho me deu seu telefone, e diariamente lhe mando o link de meus artigos e crônicas, que ele diz ser uma espécie de banho de reminiscências, principalmente porque fui seu aluno no primário, quando, ranzinza para substituir o  intransigente padre Magalhães, certa vez, após ele me negar licença por várias vezes pra ir ao banheiro do ginásio verter água, acabei chegando em casa todo mijado.

Mas até aquele aperto me traz belas recordações, pois era tido como professor competente, que nos exigia o que nos parecia estar além de nossas forças, e Tasso, certa vez, marcou uma redação para levar no dia seguinte. E ai daquele que não levasse.

Meu pai mais tio Pery inteiravam os ganhos da “Loja Póvoa” como agentes da saudosa e extinta “Cruzeiro do Sul”, despachando no campo de avião a chegada e saída dos rombudos e barulhentos DC-3. E numa daquelas ocasiões, ganhou do comissário de bordo umas coisas que sobraram do lanche que era servido no avião, dentre elas umas duas ou três maçãs, que a gente só conhecia na “Seleções do Readers Digest” que meu pai assinava.

No dia em que era pra entregar a redação, achei uma solução para minha desídia, pois eu esquecera da bendita redação: na hora em que era pra entregar o trabalho, para atalhar uma bronca em regra, cheguei à mesa de Tasso e entreguei-lhe uma reluzente maçã:

– Trouxe pro senhor, professor!

Meu gesto desmontou o intransigente mestre, que nem sei se ainda se lembra do episódio.

Semana passada, mandei-lhe uns CD´s do serviço de alto-falante “Maranata”, do qual Tasso fora locutor nos anos cinquenta; como meu irmãos Ié tinhas as músicas antigas, gravou em Belo Horizonte e me mandou pra enviar pra Tasso. Quando postei as músicas, aproveitei e mandei-lhe um livro de contos que ele ainda não conhecia. E ele, ao agradecer emocionado, prometeu lê-lo, e confessou que também tinha um livrinho seu e que me mandaria. Isto, no dia 29 de dezembro passado.

No dia 3 deste janeiro, chegou-me o “livrinho” chamado “Coisas da Bahia e alguns poemas”, editado em 2013, em edição cativa, pela “Ventoleste”, lá de Salvador.

Já de olho na estrada à espera do livro, pois ele me prometera postar em seguida, chegou-me a preciosa encomenda na tarde do dia 3. Botei de lado outras leituras e garrei no livro dele, que li de cabo a rabo, com uma satisfação de vaca lambendo a barbela da cria.

Já de início, o prefácio de José Alencar (que prefaciara meu primeiro livro, “Rua do Grito, 162” em 1978), me entusiasmou a não parar, pois Alencar é um escritor dos bons e autor do belo “Hino de Dianópolis”.

Embora muita gente descreia de livro que não para em pé, o livro de Tasso, com suas fisicamente modestas 130 páginas, mostrou-me mais uma faceta de sua arte: o de cronista e de poeta. Nas minhas críticas, nunca valorizei um livro pelo seu volume, pois o que vale é o conteúdo, e não o continente, e por isso é que perfume e boas essências não são vendidos em litros e galões, mas em pequenos frascos. Assim é o livro de Tasso.

Com a modéstia que caracteriza as grandes almas, quando zapeei acusando o recebimento de seu livro, ele pediu que, ao lê-lo: “Seja complacente no seu julgamento”.

A primeira parte, que vai quase ao meio, ele é o analista do cotidiano, enfocando fatos e personagens da terra que o acolheu como filho, fazendo-nos conhecer, por exemplo, o padre Pinto, que escandalizou Salvador, quando, demonstrando num estranho sincretismo religioso, misturou o catolicismo com as crenças nativas e africanas, sem que Tasso viesse criticar como nociva a atitude do padre; abordou também eleições em que foi escolhido um vereador transgênero, Leo Kret, sem tripudiar sobre sua opção sexual, respeitando até o vendedor de pães de sal e de doce que atormentava a Graça com a “buzina de jamanta”; lembrou o terno branco de linho (que lembrava o traje de seu pai, major Tonhá), indumentária que comprou por força de um empréstimo feito na Caixa Econômica, onde trabalhava; falou um tanto de coisas interessantíssimas, desde o vereador maconheiro, o prefeito de Ibicoara, eleito com cheques sem fundo e dinheiro falso.

Falou sobre tipos característicos, como uma mãe de santo, a ialorixá Mãe Stella, eleita para a Academia de Letras da Bahia; o “Boca Larga”, que nunca trabalhou, mas foi aposentado pelo SUS, e morreu antes de ver o gosto dos primeiros proventos; o nervoso e “pavio curto” Geraldo,  fanático torcedor do Bahia, que nunca atendia aos telefonemas comerciais de sua pequena distribuidora de água mineral, “pra não ouvir blablablá de freguês chato”, e até o caso de uma vereadora de Camaçari que, para acabar com os pontos de prostituição da cidade, sugeriu, ao prefeito a criação de um “putódromo”, sob protestos de seus pares; a história do Rei Momo magro, sem se esquecer de mencionar as três notáveis mulheres que ajudaram a vencer as forças lusitanas no comemorado “Dois de Julho”: a negra Maria Felipa, a soldado Maria Quitéria e a religiosa Sóror Joana Angélica, que se tornaram heroínas no memorável episódio. Vários tipos e passagens enfeixam com maestria sua verve de cronista.

A segunda parte do livro Tasso dedica à poesia, o que lembra o que o padre Magalhães sempre dizia: “Poeta nascitur, orator fit” (“O poeta nasce, e o orador se faz”), pois como tribuno sempre presente com sua retórica nos eventos cívicos, fez-se respeitado orador, aperfeiçoado pela orientação do padre Magalhães, que lhe aparou as arestas e o transformou num Demóstenes de nossa terra; como poeta, já nasceu pronto e acabado, seja como sonetista, como se vê nos três primeiros poemas, não se rendendo aos versos soltos, que tapeiam os que se dizem poetas, pois, para mim, poeta é aquele que traz nos versos bem escandidos a beleza da métrica e a mensagem na rima rica, ora em decassílabos heroicos e até em versos alexandrinos, como se vê em diversos de seus poemas, em que faz um panegírico de sua esposa, Eliete (a quem dedicou quatro poemas), e de sua filha, Alessandra (com três poemas), sem se esquecer de sua mãe, Carminha, do mano Jacobina, da cunhada Olga, do sobrinho Duba, do amigo e tio meu Valdomiro Ribeiro, os irmãos Cármen e Confúcio, dedicando páginas de agradecimentos à terra que o viu nascer (Dianópolis) e à que o acolheu (Salvador), sem deixar de render homenagens, como bom cristão a Jesus e sua Mãe.

Enfim, ler “Coisas da Bahia e alguns poemas”, foi uma viagem ao mais profundo do nosso passado, a cada hora nos surpreendendo pela beleza do sentimento.

 

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado – [email protected])


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