Opinião

Hugo de Carvalho Ramos, o sertão, os campos, o homem e as “Tropas e boiadas”

Redação DM

Publicado em 4 de janeiro de 2017 às 01:23 | Atualizado há 6 meses

Há cem anos nascia uma obra essencial no âmbito da literatura brasileira feita em/ou sobre Goiás. Trata-se do livro de contos de Hugo de Carvalho Ramos intitulado “Tropas e boiadas”, com evocativo título, nascido da experiência do/no sertão, na descrição de nossas riquezas culturais e telúricas que passaram, naquele tempo, a serem conhecidas pelo restante do País.

Identidade, alma e plangência poética em pleno sertão. O que era o fim de mundo, o oco de mundo, o grande Oeste chamado Goyaz.

Hugo de Carvalho Ramos, com seus olhos profundamente tristes, abriu a visão brasileira para o seu interior, a alma sertaneja; a riqueza dos campos, cerrados, chapadas, serras; na evocação do tropeiro e boiadeiro que cruzava esse grande sertão, levantando poeiras e sentimentos.

Hugo de Carvalho Ramos nasceu na Cidade de Goiás em 1895, filho de Manuel Lopes de Carvalho Ramos e Mariana de Loyola Ramos. Aluno do Lyceu de Goiás, iniciou o curso de Direito no Rio de Janeiro, sem concluí-lo. Publicou diversos trabalhos em prosa e verso em jornais goianos e cariocas. Em 1917 publicou seu livro Tropas e boiadas, que teve reconhecimento nacional. Faleceu no Rio de Janeiro em 1921, aos 26 anos de idade.

O desditoso autor não conseguiu conter a grande tristeza que carregava e o inconformismo com a vida. Sua nostalgia se derramou inteira, tomando conta de sua alma, até levá-lo ao trágico momento do fim.

E aqui fechamos as considerações – tantas – que se evocaram dos motivos que o levaram ao ato tão extremo. Ninguém pode julgar a alma de um homem na mísera condição humana e no fadário que cada um carrega na estrada da vida. Quem pode perscrutar o coração de um jovem provinciano na Capital Federal, na solidão e nas elucubrações de seu atormentado espírito?

E ele se foi, carregado de dor e angústias para o amargo fim. E aqui nos silenciamos.

O escritor goiano Hugo de Carvalho Ramos não apenas um contista pré-modernista em Goiás, autor de Tropas e boiadas, mas também poeta de elevado mérito na imprensa goiana e carioca de seu tempo. Essa produção ficou, porém, esquecida de uma maneira geral.

Precursor do Modernismo estético e temático, não só na prosa, ao lado de Leo Lynce e Maria Paula Fleury de Godoy se fez reconhecido pelo verso livre e pela inspiração na natureza goiana, vista sob diferentes óticas. Era o canto da terra, pelas belezas do Cerrado e dos acontecimentos corriqueiros; não mais ligado apenas ao sofrido viver do pranto e da saudade.

Foi ele um dos primeiros a revelar o mundo do Cerrado e do sertão aos olhos do Brasil litorâneo há um século. Revelou a vivência e as agruras dos tropeiros, boiadeiros, comissários e carreiros que cruzavam o sertão nas dificuldades de então.

Hugo de Carvalho Ramos é o primeiro escritor regionalista de real importância a considerar nesse período. Histórias e quadros sertanejos constituem o grosso de seu livro Tropas e boiadas. Histórias que são fruto de sua vivência nos chapadões goianos.

Não se lhe pode negar brilho descritivo, não obstante a minudência pedante e não raro preciosa da linguagem, mas se prendem ao estilo de seu tempo. Estava ainda preso, em certos momentos, a uma necessidade de explicar.

Seu livro pouco conhecido, coligido após sua morte foi Plangências, com uma série de contos e/ou artigos que relatam a vivência campesina. Fala muito do sertão e do sertanejo, na hercúlea luta para sobreviver num ambiente novo e hostil, sem o menor progresso ou preparo.

Nessa obra, com título de “O interior goiano”, busca revelar o que é o sertão e o que é o sertanejo nesse ambiente cerradeiro e diferente. Discute o autor sobre o desconhecimento generalizado em todo o País da época sobre o sertanejo, assim como o desconhecimento do próprio Lugar, o sertão, visto como toda e qualquer Região onde o progresso de então não estivesse chegado, com toda uma gama de horripilantes e asquerosos animais ou doenças tropicais que causavam sofrimento.

As cidades eram apenas amontoado de gente preguiçosa, indolente, cheia de malária e impaludismo, febres e doenças piores. Desmistifica assim, o autor desse trabalho a ideia que se tem do que se denominou sertão: “Ignoram comumente habitantes de cidades do litoral e chamados eruditos de gabinete, o que seja, na realidade, o nosso tipo do “sertanejo”. – Sertão para muitos abrange todos esses vastos latifúndios onde não chegou ainda o silvo da locomotiva, e que se presume totalmente desertos, quando não abalados pelo uivo noturno dos canguçus e suçuaranas à beira dos bebedouros, ou o chocalhar das cascavéis e sucuris, à espreita da presa fácil nos paludes e remansos dos grandes rios misteriosos. Alguns mesmo, incluem na denominação vilarejos e cidades que nos assinala o mapa por aqui e além semeadas nessas solidões”.

Já a respeito do caipira, do homem cerradeiro, vivenciando todo o ambiente, evoca sobre as classes sociais do sertão, os contratos de trabalho nem sempre justos; o ideário de família grande, toda pronta para a labuta como mão de obra barata, assim como o pensamento de fartura e desenvolvimento em se ter o de comer, sem as condições de bem estar e saúde, mas com um modo de vida sui generes, diferente do litoral, mas um diferente não apenas no conforto, em muitos outros significados: “A par do tipo isolado do “caipira”, vivendo de parcos recursos da lavoura, existem as fazendas de plantação, largas culturas, na vizinhança das vilas e cidades, trabalhadas pelos próprios fazendeiros, filhos, camaradas ou agregados, o que dá, de passagem, nascença ao citado prolóquio de que, no interior, “família grande é riqueza”… Mostram, de resto, uma escala superior de prosperidade e fartura; e embora não sejam, algumas vezes, de todo boas as condições sanitárias do meio, dado o contrato diário das ditas terras de lavoura, que quase sempre, como dissemos, só apresentam maior soma da opulência vegetal e inorgânica junto aos ribeirões ensombrados, vivem, contudo, em relativo bem-estar, nada ficando a dever aos moradores das tão gabadas plagas litorâneas. Todos esses, são nas cidades do interior designados genericamente pelo nome de “roceiros”.

Ainda nessa mesma obra, destaca sobre a densidade populacional goiana, que, na época era de cinco habitantes por quilômetro quadrado, muito diferente da realidade atual. Destaca sobre o abandono do sertanejo em relação às comunicações que se davam pelo lento carro de boie das tropas e destaca, em crítica, sobre o analfabetismo generalizado. Há certa descrença do contista na melhoria da situação agravada pelo descaso do próprio sertanejo: “Em Goiás, por exemplo, em que a densidade é pouco mais de 0,5 de habitantes por quilômetros quadrado, como fazer chegar às choças, disseminadas às distancias, as luzes emancipadoras, se as comunicações se fazem ainda por vias do faraônico carro de boi e às costas de bestas de carga? Como impor ao campônio o ensino obrigatório de acordo com a última lei do Estado, se este, a União, nem tampouco as Câmaras Municipais, oferecem mais que lhe facilitem, nas grandes caminhadas e maiores dispêndios, o acesso às cidades, às fazendas modelos, às escolas públicas vilarejos ou rurais (se é que se vai mesmo tentar a execução dessa medida de eminente necessidade?). Até meados do século passado, a população analfabeta da Inglaterra era de 30%.”

Há em seus contos uma descrição do assa-peixe, com uma linguagem clássica a definir o mesmo bem florido, visitado pela voracidade dos passarinhos: “Ao lado do desvio, assoberbava o assa-peixe tristonho, agitadas as franças cá e lá pela arribada atônita duma aluvisão de pintassilgos, coleiros e patativas assanhadas a petiscar pelos pendúculos cacheados e floridos”.

Em seu outro livro e o mais conhecido, literário e poético, alcunhado de Tropas e boiadas, faz descrições do Cerrado, do sertão, do ambiente e da paisagem goiana de outrora, com claras descrições ainda ao estilo romântico.

O contista utiliza termos poéticos ao exaltar a gameleira centenária, os pássaros a trinarem na mesma, as reses no campo, com as serras em torno, a “várzea aberta dos buritis virentes”, destaca a “fruteira de lobo e os coqueiros de macaúba, como tênues fugaces espalmadas sobre a crosta recozida do solo”. São traços de uma linguagem rica e adjetivada para destacar a singeleza do Cerrado, ainda mais naquele tempo: “Ao lado da estrada real e à sombra espessa duma gameleira centenária em cujos esgalhos finos cantavam em épocas de sazão a passarada, e arquitetavam o ninho gentil os povis e tiés mimosos de papo fulvo e penugem azulejadas das campinas, ficava a venda da bruxa dos Marinhos, assim como a nódoa minúscula e alvinitente duma rês branca, sobre o fundo verde-dourado a imensa malhada que eram aquelas paragens. Avultava ao longe, mal dobrassem o cotovelo brusco duma serrota de alourejada coma de capim-melado e moitas de murici cheiroso, na várzea aberta dos buritis virentes que espanejavam, à fresca das manhãs veranejas, a sua flavela esguia e revoluteante de folhas, toda arqueada e gemebunda aos afagos do vento”.

Em outro conto, alude sobre os pousos sertanejos, o descanso dos animais, a noite no cerrado com o pernilongos, os insetos, a mariquinha de cozinhar o arroz, os charcos, as baixadas alagadiças do Cerrado, as restingas de mato na beira dos córregos, com belas imagens em expressões como “em terna elegia as jaós merencórias do sertão”, ou ainda “ao longe as várzeas tenras onde o Jaraguá altaneiro campeava eternamente viçoso nos descampados limpos”, também “palmeiras indaiá abertas em leque à flor da terra”, ainda “piava aguda, lamentando-se a ausência da companheira predileta a perdiz solitária das campinas”. São imagens lindas da vivência do Cerrado, captadas pelo prisma da poesia em prosa: “Ao pouco arribava à boquinha da noite, feita a descarga, raspada, curada e amilhada a tropa já no encosto costumeiro da aba do morro, esfregadas a sabuco, afofadas e atalhadas as cangalhas pisadoras, a “janta” desempoleirada do gancho da mariquita aberta sobre o brasido, ao voejar imperceptível dos primeiros enxames de muriçocas e pernilongos saídos dos charcos de juncais e angola das baixadas alagadiças, quando nas restingas de mato da beira dos córregos e capões, começavam a sua terna elegia as jaós merencórias do sertão; e longe, nas várzeas tenras onde o Jaraguá altaneiro campeava eternamente viçoso, nos descampados limpos, semeados aqui, ali”.

Em outro conto,  evoca o entardecer no sertão, com sua tristeza carregada no Cerrado e nos bichos, na luta campeira e na labuta das tropas. Mostra os piados dos guaxos, joões-congos nos jenipapeiros, os cantos de jaós e perdizes nas matas e “furados” do Jaraguá, a “paz do sertão ao anoitecer”, nos “escampos solitários”. Como sempre o ideário de abandono e solidão nos cerrados de outrora: “Caía sobre o Vermelho, que passava ao fundo, a grande, merencória tristeza da tarde. Berravam nos cercados os bezerros. Piavam guaxos e joões-congos nas grimpas os jenipapeiros, onde ninhos caprichosos, ao feitio de compridas bolsas, balouçavam prenhes. Mosquitinhos azoinantes e zumbidores enxameavam ao longo das tranqueiras, nas “perebas” dos moleques, sobre a lombeira sarnosa da cachorrada, que, a bruscos estremeções do pelo arrepiado, gania relambendo-se entre palhas, no borralho”.

Também, em outro conto, evoca as histórias sertanejas nas noites em que se contavam inúmeros casos na solidão cerradeira. “histórias deslembradas”, como ressaltou o contista, sem autoria, de tempos imemoriais. Mostra o autor todos assentados sob a copa desfolhada de um jatobá gigantesco, como uma casa, tal o seu tamanho no “seio aspérrimo das solidões goianas”.

Imagens profundas foram construídas pelo narrador, como páginas antológicas de um Bioma-território que hoje vai desaparecendo pouco a pouco. Mostra no mês de maio a vegetação das campinas desaparecendo, no Cerrado, pelo início da seca com a “ressequida vegetação tenra e rasteira dos campos goianos”: Contavam casos. Histórias deslembradas do sertão, que aquela lua acinzentada e friorenta de inverno, envolta em brumas, lá do céu triste e carregado, insuflava perfeita verossimilhança e vida animada. Pela maioria, contos lúgubres e sanguinolentos, eivados de superstições e terrores, passados sob o clarão embaçado daquela mesma lua acinzentada e friorenta de inverno, no seio aspérrimo das solidões goianas. Acocorados à sertaneja sob a copa desfolhada do pouso-um jatobá gigantesco-“aquentavam” fogo, a petiscar baforadas grossas dos cigarrões de palha, ouvidos atentos ao narrador”.

Logo adiante, em outra narrativa, revela nuances do Cerrado ao destacar os frutos do campo cerradeiro como o araticum, o pequizeiro, a fruta do lobo, os coqueiros de macaúba, também o sapé bravio, os travessões de mato, as várzeas, traços belos da manhã como “o sol aquentando e vibrando todo o sertão numa auréola gloriosa de luzes”, além dos barulhos dos insetos, as cigarras, os pássaros e as águas. É o Cerrado em todo o seu esplendor: “E quando galgava a eminência de um descampado, onde eram o araticum do campo, o pequizeiro, a fruteira-de-lobo e os coqueiros de macaúba que para cá dos listrões de mato se descortinavam esparsos no sapé bravio, a sua vida perdia-se ao longe, nas ondulações do terreno, abrangendo a récua distante do dianteiro, contornando um serrote; mais aquém, no fundo da vargem, o segundo, que galgava a encosta; o terceiro e o quarto ainda ocultos no travessão de mato, lá embaixo, donde não tardaria em pouco aquele a desembocar; o quinto acobertando-se nas árvores, e os cincerros da guieira do culatreiro a chocalhar-lhe os ouvidos ali adiante, numa nuvem de poeira, de que recebia as últimas lufadas”.

Na sequência de outro conto, descreve a passagem do carro de boi na baixada, com imagens românticas de uma “tarde ensaguentada”, o clarão crepuscular baixando lentamente sobre as matas, os jequitibás altaneiros e fortes, com imagens do mesmo, como guardiões da mata, sentinelas vegetais avançadas a proteger a vegetação. Descreve, ainda as inocentes brincadeiras das crianças cerradeiras: “Deixando atrás a longa trilha paralela do ferro das rodas, rolava um carro encosta abaixo, ao passo vagaroso da parelha de bois, o eixo lamuriando à distancia ao atrito dos munhões, vindo das plantações do outro lado da baixada. Ensangüentada, a tarde baixara o seu clarão crepuscular sobre a mata, ao longe, a cuja entrada dois jequitibás se alteavam, erectos e sobranceiros aquele mar de frondes, donde a sombra parecia avolumar por graduações, redourada e tênue ainda nas ultimas cumeadas, dum azul sombrio e carregado sob as últimas ramagens, riscadas aqui, ali, dos primeiros pirilampos”.

Em ouro conto, revela o horizonte sertanejo com as queimadas de agosto, com o fogo se alastrando rápido por “gerais, tabuleiros e chapadões”, campos abertos propícios aos ventos, léguas e léguas de serras também sendo devoradas; assim como a destruição do mundo intenso dos passarinhos aninhados em jatobás, barrigudas e tamboris, também devorados pelas chamas inclementes.

Na descrição do sol em meio à fumaça, o contista chega ao poético: “O sol semelha-se de eito a eito um enorme carvão aceso e sangra pelo flanco a sua luz avermelhada: “Pelos dias de agosto, todo o horizonte goiano é um vasto mar de chamas: fogo das queimadas que ardem, alastrando-se pelos “gerais” dos tabuleiros e chapadões a afugentar a fauna alada daqueles campos; fogo dos cerrados que esbraseiam, estadeando a noite os seus longos listrões de incêndio nas cumeadas das serras, intrometendo-se léguas e léguas pelo mato grosso e travessões do curso dos rios e subindo, carbonizadas as folhas secas que o vento acamara, pelo cipoal e trepadeiras dos troncos seculares, cuja casca rugosa tisna de sobreleve para ir em fúria crepitar nas grimpas, entre as galharadas verdes, reduzindo a cinzas os ninhos balouçantes do sabiá nativo, as caixas extravagantes da borá e mandaçaia, quando não enxota de pouso em pouso as guinchantes guaribas, os velozes caxinguêles, das alturas prediletas do tamboril, jatobá, aroeira ou barriguda – os mais comuns – daquelas matas”.

As terras “ermas” e solitárias do Cerrado não são esquecidas nos contos de Tropas e Boiadas. O autor evoca a passagem dos viajantes por bandos de araras e papagaios, os cracarás, as plantas como marmelada de cachorro, o verde das campinas, os ingás suculentos, além dos sapotis, frutas típicas do Bioma-território Cerrado: “Assim, anos lá vão, cavalgava eu por essas estradas ermas da minha terra remota, um macho perrengue de aluguer, ou o lépido alazão Dourado, em férias, rumo do Sítio. Dia em meio, casais de araras e bandos de papagaios despregavam dum jenipapeiro qualquer de tapera o seu vôo balofo, e passavam alto, em gritaria álacre de contentados; cracarás corriam escrutadores e solertes pelos campos, em surtos rasteiros de carnívoros. O verde das campinas, das orlas de mato longe, quando ganhava a chapada, tinha deslumbramentos intensos de seiva robusta e viva”.

Em outras passagens da obra de Hugo de Carvalho Ramos há descrições belíssimas do Cerrado, tais como a comparação entre a estrela e o boiadeiro: “No céu, lacrimejava já a estrela boiadeira. Uma acauã grazinou mato adentro, espreitando agoureiro.”; as ninhadas de ovos no acieiro do Cerrado: “No aceiro, uma ninhada d’ovos em véspera de abrir.”; o urucum do Cerrado utilizado pelos índios para pintar o corpo: “a dança dos índios, na sua veste cor-de-carne, tinta de urucum, à moda dos tapuios, os cocares e as cintas de penas variegadas, trazidas de propósito de aldeamentos indígenas da beira do Araguaia.”; os pássaros alegres e festivos nas embaúbas: “Batuíras e xenxéns chalravam nas embaúbas digitadas dos grotões.”; os troncos de imbiruçu, uma espécie de palmeira: “Amarrei seguro as bridas a um tronco de imbiruçu e voltei atrás, decidido”; a macega como mato sujo e possível de bichos ruins como a cobra: “Não se esquecesse, o papá, dos filhotes de periquitos que ficavam lá no fundo do grotão, entre as macegas espinhosas de malícia, num cupim velho do pé da .”; as frutas do mato como curriolas, as mangabas, guabirobas colhdias pelos tropeiros: “A colher pelo caminho, junto aos cerrados e capoeira, o murici cheiroso, cuja árvore anã e folhada se distinguia ao longe, as corriolas verdolengas, denunciadas a distância pela fragrância intensa, e mangabas e guabirobas, que trazia em jacazinhos, sobre o gancho do silhão…”, assim como as marmeladas de cachorro encontradas em profusão: “Nas beiradas de barrancos – onde o carreiro se cavava fundo pelo trânsito continuado – marmeladas-de-cachorro ofereciam os seus negros e brilhantes frutos maduros”.

Tais passagens são provas da perspicácia do contista pioneiro de Goiás na valorização do Cerrado, seus costumes, valores, frutos, bichos, tradições, usanças e fatos dos tempos idos, narrados com maestria.

Há outras passagens interessantes do autor em relação ao Cerrado, na descrição do mesmo, sobre o ciclo das queimadas incessantes, prática comum naquela época pelos chapadões de Goiás, como: “Pelos dias de agosto, todo o horizonte goiano é um vasto mar de chamas: fogo das queimadas que ardem, alastrando-se pelos gerais dos tabuleiros e chapadões a afugentar a fauna alada daqueles campos; fogos dos cerrados que embraseiam”.

Além de contista aplaudido, a evocar o Cerrado, Hugo de Carvalho Ramos também foi poeta. Em seus versos também aparece o sertão de Goiás em toda a sua singularidade.

Em seu longo e épico poema “Florestas”, evoca, com certeza toda a grandiosidade da natureza goiana, por seus elementos constituintes e que enriquecem a cultura e a vivência goiana.

Destaca a grandeza e mistério das florestas e matas altas do Mato Grosso goiano; o “murmúrio das largas ramadas”, a destacar a eloquência dos ventos entre as grandes árvores copudas e altas; o pensamento de embriaguez diante de tanta grandeza, de robustez de natura indomável àquele tempo.

Continua o poeta dando à mata um épico existir de deuses e mitos, seres mitológicos a evocar sua importância, além de ninfas e centauros, num gosto literário por imitar os clássicos. Utiliza de uma linguagem rebuscada para falar das flores pequenas, das amoras, dos frutos desse “bosque sagrado”, ou as “matas de abril”, com seus cantos de cigarra; que se fecha num sagrado rito de ser eterno e forte; muito mais forte que o homem pequenino, quase indefeso, diante do húmus da terra que fecundava novas matas incessantes.

Dedicando-se a ser o cantor, o vate o inspirado poeta das paisagens goianas, Hugo de Carvalho Ramos evoca a várzea, já a utilizar a forma fixa do soneto, em que destaca a sinfonia da várzea, com seus tantos pássaros, os buritis, os ermos dos sertões. Novamente o ideário de profunda solidão dessas áreas alagadas e palustres, semelhantes ao pantanal, presentes em certas regiões goianas.

Fala o poeta da palma do indaiá, o assa-peixe do Cerrado com os florões ao vento, as áreas alagadas sendo transpostas por tropas, boiadas e bichos tantos, na eloquência da vastidão sertaneja. Recorda o autor a “chuva de caju”, emblemática no Cerrado, além da ema a transpor o cenário como símbolo de todo um universo descrito e evidenciado simultaneamente: “Acorda a várzea em festa. É a ronda das falenas!/A “chuva dos cajus” enflorou as campinas/para onde erguem o vôo multicor das antenas./Vão as emas, ralhando, através da malhada/Treme o rocio… E ao sol, que aponta entre colinas,/pulverizam-se em luz as gotas da orvalhada”.

E mais eloquente ainda, destaca o pequizeiro, fruto emblemático do Cerrado, presente na chapada goiana. Poema livre, de forma solta, este é narrativo a princípio quando evoca a flor do pequi caída e uma veada lá vai se alimentar e o caçador a aguarda para abatê-la. É em forma de toada folclórica que o poema vai repetindo a flor do pequi a cair, sempre, ao som da viola a entoar.

Rememora o viver cotidiano roceiro, com o chuvisqueiro, o terreiro, o galo a cantar na madrugada, e sempre a viola entoa, como se a dizer do tempo perdido da vida sertaneja de outrora, na roda do dia, até o pequizeiro parar de derrubar a flor.

Evidencia o poeta que tudo isso é cíclico desde o romper da aurora. Faz parte de uma tentativa, ao que parece, do poeta em recolher as cantigas sertanejas e a elas tentar compreender o sentido; como o fez nesse mesmo tempo o poeta Antonio Americano do Brasil.

O pequizeiro da chapada

a flor começa a derrubar,

lá vai de noite uma veada

de vez em quando merendar.

O caçador deixou armada

uma tocaia de caçar

bem na forquilha da galhada

para a semana de luar.

De noite escura não é nada

nem há de que se arrecear…

O pequizeiro da chapada

a flor começa a derrubar.

A minha viola na toada

assim parece o pequizeiro,

que deixou flor lá na chapada

com o primeiro chuvisqueiro.

Já da janela estás corada,

enquanto choro no terreiro,

é que cantou esganiçada

a voz do galo no poleiro.

Menina de olhos de alvorada

mais o seu riso feiticeiro,

a minha viola na toada

assim parece o pequizeiro…

– Tu te fizeste branca, branca,

enquanto o dia invade o ar…

O pequizeiro da chapada

a flor cessou de derrubar.

Em prosa ou em verso, Hugo de Carvalho Ramos foi um escritor das coisas e fatos ligados ao Cerrado em Goiás e ao sertão, não como um lugar definido, o lugar onde se exila o homem; mas algo mais profundo com mais sentido. Era o desconhecido onde morava a imaginação e as histórias fantásticas.

É um sertão como travessia, sem princípio, sem meio e sem fim.

O sertão como isolamento da alma, às vezes triste e dolente, como os passarinhos do mato em seus cantos nostálgicos ao entardecer.

Cem anos de um grande livro, de um livro eterno na alma goiana. Revelação de um talento precoce, de uma alma torturada dentro de um corpo em profunda vibração com a terra e todos os seus significados.

E sua alma errante caminhou pelos campos e chapadas. Atravessou velhos rios de águas cantantes; subiu morros, passou por estradas poeirentas e alcançou a paz de um Lugar que não existe aos olhos do mundo; ao que certo, chamam de céu, na translucidez do azul de todas as hortênsias.

 

(Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado, graduado em Letras e Linguística pela UFG, pós-graduado em Literatura Comparada pela UFG, mestre em Literatura pela UFG, mestre em Geografia pela UFG, doutorando em Geografia pela UFG, escritor, professor e poeta [email protected])

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