Opinião

O RANCHO DA HISTÓRIA

Redação DM

Publicado em 3 de janeiro de 2017 às 00:48 | Atualizado há 5 meses

  •  Rancho erguido há mais de 100 anos foi centro das principais decisões administrativas de Goiás por volta do intervalo compreendido entre 1912 e 1930

Ele é, de longe, o mais antigo rancho de pau a pique ainda conservado em Goiás. Mais que isso, foi palco de decisões relevantes para a história, dentre elas a escolha de presidentes (governadores) do Estado, sem falar nas reflexões e definições quanto a programas de governo e diretrizes administrativas. Erguido há mais de 100 anos por Antônio Ramos Caiado, o Totó Caiado, era ali que o lendário chefe político, detentor absoluto do poder em Goiás no período que vai de 1912 a 1930, passava longas temporadas com a família cuidando de sua fazenda Tesouras, ou Baixio, uma imensa gleba nas duas margens do rio Tesouras, hoje ocupando espaços de vários municípios, entre os quais Nova América, Crixás, Araguapaz e Mozarlândia, e pertencentes aos seus herdeiros de duas gerações (filhos e netos). Um desses herdeiros é Antônio Ramos Caiado Filho, o Caiadinho, 86, advogado, aviador e empresário rural. Caiadinho, o caçula do segundo dos dois casamentos do pai, é o proprietário e guardião da fazenda Baixio, parte do conjunto de glebas denominado Tesouras. Foi em terras da fazenda Tesouras, ou Baixio, de tantas glórias, que Totó, diante da vitória da revolução que levou Getúlio Dorneles Vargas ao poder em 1930, viveu o instante crucial de sua derrocada política, ao ser aprisionado por uma companhia do Exército (cerca de 80 homens armados). Quando a tropa chegou à fazenda, Totó, seu irmão Leão Caiado e o filho mais velho, Ubirajara, se encontravam escondidos. “Meteram a taca no vaqueiro, o Marcelino, e ele foi levar a polícia lá, no local chamado Buriti Solteiro”. Ubirajara teria grito: “Corram que é muita gente”. Totó não seguiu essa orientação. Dirigiu-se acintosamente em direção à tropa. Por isso, registra a história, teve sua vida poupada. Se quisesse, teria fugido, graças à sua experiência de sertanista, vaqueiro ao conhecimento minucioso de toda a região.

Além do rancho, os currais e até o tronco no qual Totó amarrava seu animal de montaria, de uma rusticidade que impressiona, tudo está preservado. Mesmo a cobertura do rancho, substituída a cada período de cinco anos, é de palmas de buriti, tal como a que o cobriu pela primeira vez, quando Totó o construiu, por volta de 1907. Foi ali que Totó e sua segunda esposa, Maria Adalgisa de Amorim Caiado, a Mariquita, casados em 1909, passaram a lua de mel. Afastado da política, a partir de 1932 (os primeiros anos de getulismo foram vividos na prisão, no Rio de Janeiro), Totó Caiado teve mais tempo para seus afazeres privados. Antes de 30, exerceu vários mandatos de deputado federal e de senador, além de presidir seu partido, o Democrata, e de controlar minuciosamente a atividade político-administrativa de Goiás. Fora da política e cuidando de seus negócios, visitava as fazendas, demorando-se mais “nas Tesouras”. O caçula dos irmãos Caiado recorda saudoso as temporadas na fazenda. O ponto alto era as vaquejadas, destinadas à visitação de todo o rebanho esparramado pelos campos, cujo objetivo principal era o desfrute: a apartação de bois a serem levados para outras propriedades, próximas à Cidade de Goiás, e numa segunda etapa encaminha-los ao abate.

Origens da gleba de Tesouras

Jornais de oposição ao caiadismo, pertencentes a políticos que lhe faziam oposição, exploraram exaustivamente a propriedade de duas grandes glebas que pertenceram a Totó Caiado. Além de Tesouras, a fazenda Aricá, às margens do rio Araguaia, na região de Aruanã. Aricá foi vendida há várias décadas por Totó. Ambas muito extensas, os adversários apontavam como privilégio o fato de haverem sido legalizadas (tituladas) pelo governo goiano enquanto estava no exercício da governadoria o vice, cujo governador, o médico Brasil Ramos Caiado, irmão de Totó, estava de licença. Desde a abertura democrática de 1945, nas campanhas eleitorais disputadas por PSD (Partido Social Democrático, liderado por Pedro Ludovico) e UDN (União Democrática Nacional, à qual se filiavam os herdeiros políticos de Caiado, a exemplo de seu filho Emival Caiado), as campanhas eleitorais goianas costumavam abrigar discussões sobre o que o PSD denominava de “o grilo de Tesouras e Aricá”. A campanha mais recente de que este repórter tem notícia a tratar deste assunto foi a de 1994, no primeiro turno, durante um debate televisivo dos candidatos ao governo. Maguito Vilela (PMDB, afinal eleito num segundo turno disputado com a atual senadora Lúcia Vânia), deixou irritado o candidato Ronaldo Caiado, neto de Totó e também candidato a governador, ao lembrar Tesouras e Aricá.

Caiadinho lembra que aquelas terras foram “posseadas” em tempos remotos por Antônio José Caiado, que construiu casas e currais nas margens do rio Farinha. Depois, Torquato, filho de Antonio José e pai de Totó, implantou sua posse numa margem do rio Braço do Campo. O Braço do Campo e o Braço do Mato formam o rio Tesouras. Ele atribui o interesse de Totó por extensas glebas ao fato de seu pai, tendo morado em São Paulo e no Rio de Janeiro durante a juventude, ter consciência de que aquelas terras, um mundão de ninguém, um dia teriam valor, a exemplo das do Rio e de São Paulo. Para justificar a assertiva de que não tinham valor, recorda que seu pai, já na posse da fazenda Baixio por ele implantada, adquiriu de dois sócios seus vizinhos, José Batista Alencastro e Afonso Alencastro, cerca de 2.400 cabeças de gado e ganhou a terra. Ou seja, pagou somente o valor do rebanho. “Isso era comum naqueles tempos”, justifica.

Um misto de dureza e romantismo

Caçula dos irmãos Caiado, 86 anos completados no último 7 de novembro, tem o nome do pai numa homenagem de sua mãe, Mariquita, ao marido. Totó Caiado estava preso no dia do nascimento de Caiadinho. Todos os demais irmãos foram registrados com nomes de iniciais E: Edenval, Enery, Emival, Elcy, Elgezy e Eldory, que morreu aos 12 anos. Outro precocemente falecido foi Emy, o segundo na ordem cronológica, morto aos 16 anos devido a uma infecção decorrente do coice de uma mula. “Tinha vocação política. Militava na política estudantil”, diz Caiadinho. O mais velho de todos, Ubirajara Ramos Caiado, cuja mãe se chamava Eugênia Leite, nasceu quando Totó ainda era solteiro.

Todos os filhos e filhas de Totó frequentavam as fazendas, e, na região do Tesouras, as longas temporadas envolviam atividades próprias da fazenda. A principal delas eram as vaquejadas, destinadas a reunir o rebanho para separar os bois a serem encaminhados para abate. Nunca se sabia a quantidade de reses na fazenda. “Nem agora sei quantas tenho”, diz o herdeiro da sede, a Baixio. O tamanho? Acha que são mais de três mil alqueires. A vasta extensão da fazenda abrigava entre quatro e cinco mil cabeças, é o seu cálculo. O desfrute desse rebanho era pequeno. Entre 300 e 400 bois eram encaminhados para abate a cada ano. Gado curraleiro. Tão rústico que nunca era vacinado ou recebia qualquer assistência veterinária. Sal? Lambia os barreiros. O sal levado à fazenda era para consumo humano. As fêmeas eram abatidas, devidamente escolhidas entre as que estivessem mais gordas, para consumo na própria fazenda.

As vaquejadas daquela época, inspiradoras das que são realizadas agora, sobretudo no Nordeste do Brasil, e que recentemente provocaram repulsa em alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, que as proibiram, eram, sim, realmente cruéis. Mas não havia alternativa: brabeza, visto pelo dono só uma vez ao ano, tinha de ser levada à força até o curral. À força de boi, dos chamados bois de trela, animais adestrados para levarem, um atado ao outro por uma corda, bois aprisionados, castrados e amarrados numa árvore no dia anterior. Alguns rebeldes amanheciam mortos e, às vezes, tiravam-lhes o couro para ser espichado, secado e usado nos afazeres da fazenda. Por vezes, esses couros faziam o papel de colchões e as pessoas dormiam neles. As vaquejadas da fazenda Tesouras eram um acontecimento e tanto. Peões de outras fazendas participavam como se estivessem numa olimpíada. Dos irmãos Caiado, Edenval era o mais competente, segundo Caiadinho, que lembra também a inteligência de um peão chamado Antônio Francisco, depois fazendeiro ali próximo (Totó Caiado, que tinha por ele grande apreço, vendeu-lhe uma gleba em condições especiais). “Ele era o único que, no final do dia, conseguia marcar o rumo certo para voltarmos à sede”, comenta. Caiadinho recorda admirado de alguns animais da fazenda, como determinado boi de trela que recusava aproximar-se de um brabo de grande porte. “Corria que dava tanto trabalho quanto o outro para ser pego. Quando era para carregar um pequeno, não dava trabalho”.

As viagens da família entre a Cidade de Goiás e a fazenda duravam  entre cinco e seis dias. A tropa (animais de montaria e de cargas) era buscada em Lages, uma fazenda no município de Itaboraí. Caiadinho fez sua estreia aos dois anos de idade, por volta de 1933. Montava seu próprio animal, mas, quando o sono chegava, era conduzido por outro cavaleiro. Cumpria-se uma agenda: o primeiro dia de viagem era até a fazenda Europa, de Leão Caiado. “Zizi Perillo Caiado era uma quitandeira farturenta”, lembra. No dia seguinte, viajavam até a fazenda da família Barros Caiado ou, forçando um pouco mais, a do Xavier. No terceiro dia, o poso era na fazenda Romão, de Joaquim Santana. Caiadinho recorda uma fruta saborosa que degustou numa dessas viagens “na fazenda da viúva do André. “Era o fruto de um cacto plantado em cima do muro. Fruta gostosa. Nunca mais vi”. A quinta noite da viagem geralmente já era num retiro da fazenda de Caiado, o Braço de Campo, a umas quatro léguas do Baixio. Havia outros retiros na fazenda Tesouras, além do Baixio (atual sede da gleba que Caiadinho herdou): um na serra do Roncador, outro no largo do Café, outro no lago Bonito. Totó, que a partir dos anos de 1950 passou a deslocar-se até a fazenda utilizando um pequeno avião, percorria a cavalo todos os seus retiros e fazia também outras viagens a cavalo. As estórias da vida ali são muitas. Caiadinho diz que ao chegar num desses retiros, há muitos anos, durante uma vaquejada, deparou-se com uma situação inusitada, tendo em vista um desses desejos de que são acometidas algumas mulheres quando grávidas: “A mulher do vaqueiro queria comer uma farofa de peido de cachorro com farinha. A sorte foi que a farinha eu carregava”, lembra sorridente. Onças? “Em um único ano matei vinte e duas. Uma com o cano de minha carabina dentro da boca dela”. Hoje, com uma queda pelo tema ecologia, Caiadinho procura preservar ao máximo a flora e a fauna da região. Nem mesmo as onças ele quer que matem, pouco lhe importando uma ou outra cabeça de gado que essa fera lhe subtraia.

A vida no rancho

O rancho onde viveram Totó, Mariquita Caiado e seus filhos e filhas está preservado. Recentemente, Caiadinho construiu 12 suítes luxuosas na fazenda. Nas férias de julho, gosta de receber seus descendentes e hospeda nessas suítes os habituados a itens de conforto como geladeira e banheiro nos aposentos, além de ar condicionado (a região é das mais quentes de Goiás). Muitos preferem armar suas barracas nas brancas areias do Tesouras, que durante a seca fica restrito a poços repletos de peixes, iguaria constante no cardápio da fazenda Baixio. Foi numa dessas suítes que este repórter dormiu. Noutra, seu convidado, o comandante de aeronaves Rubens Ferreira de Assis, o Rubão. Filho de sertanejos daquela região, Rubens de Assis tem um tio, o fazendeiro João de Assis, afilhado de batismo de Totó, amigo de seu avô na primeira metade do século passado. Na fazenda, mora Arnaldo de Assis, um trabalhador rural cujo único emprego durante toda a vida foi ali. Aposentado, não quis mais sair de lá e o fazendeiro construiu de alvenaria uma casa especialmente para o antigo empregado. “Pelo visto–comentei – , os Caiado não são os patrões de que falam”, brinquei. Caiadinho aprovou a observação, sem restrições. Antenado, Caiadinho acompanha pelo rádio e a tevê os acontecimentos, em especial os da política em Goiás e em Brasília. Mas nunca pensou ser candidato. “Não teria paciência para suportar a convivência com políticos como esses, quebraria o pau”. Segundo ele, não ficaria como seu sobrinho, o senador Ronaldo, que convida seus contendores para resolver “lá fora. Resolveria ali mesmo”. Mas sua discordância com Ronaldo fica aí. No mais, acha que está mais uma vez chegando a oportunidade de um Caiado governar Goiás. “Se o Iris for eleito em Goiânia (nossa conversa foi em setembro, quando se achava em curso a campanha eleitoral de 2016). Ainda sobre a valentia dos Ramos Caiado, ela é tema de brincadeiras nas reuniões familiares. Murilo, um jovem engenheiro, que mora em Goiânia e é pecuarista na região, líder político do PMDB em Nova Crixás, onde grande parte dos eleitores sonha vê-lo prefeito, contou-nos que um de seus tios projetou a implantação de uma cidade em terras do Tesouras. Depois, desistiu alegando que o local era deficiente de um manancial para o abastecimento do ex-futuro núcleo urbano. Mas o motivo do fracasso teria sido outro: “O que atrapalhou foi o apelido que a cidade de meu tio logo ganhou e que se espalhou por toda a região: Caiataca”.

O uso das luxuosas suítes construídas na fazenda obedece a um regulamento. O convidado é orientado a levar as roupas de cama, incluindo o travesseiro. Até mesmo o historiador Jalles Guedes Coelho Mendonça, promotor de Justiça, também convidado através do advogado Alexandre Ramos Caiado, e que lá esteve em companhia da esposa e do casal de filhos, levou de Goiânia suas roupas de cama. Todos os convidados desfrutaram grande hospitalidade. Uma cozinheira de grande competência, Marly de Assis, irmã do peão aposentado Arnaldo, partiu de Mozarlândia para servi-los. Entre as iguarias do cardápio, incluiu-se até uma “maria izabel” de carne seca de uma búfala, levada de avião a partir de outra fazenda de Caiadinho pelo piloto Arnaldo, outro filho.

O rancho centenário construído por Totó tem duas áreas com dois quartos no meio. A área dos fundos é onde ficavam as mulheres: ali a mulher e as filhas cozinhavam e trabalhavam como artesãs. Faziam tricô, croché, costuravam. Da dalma dos buritizeiros, trançavam vários objetos, inclusive seda de buriti.

Um dos quartos era do casal Totó e Mariquita. O outro, das moças. Os rapazes pernoitavam na outra área, defronte dos quartos. Dormiam em colchões recheados de palha de milho. No final de cada temporada, os colchões eram esvaziados, lavados e retornavam a Goiás.

A mesa de refeições do líder político é de caramã. O banco em que ele sentava, de taboca, tirada na lua minguante “para não carunchar”. Os pés da mesa são de aroeira. Tudo amarrado com emboras de pau de óleo. Os pés da mesa e do banco, também de aroeira, assim como os esteios e a cumeeira do rancho (todos originais, graças à resistência da aroeira). A porta do quarto do casal é de braço de buriti. O rancho tem paredes de taipa (pau a pique e recheio de barro). No seu tempo de uso, a iluminação era de candeias cujos pavios acesos eram alimentados pelo azeite de mamona.

O chefe de Tesouras, Totó, era o principal organizador das lendárias vaquejadas. Antigo tropeiro, atividade que exerceu mesmo depois de formado em Direito pela USP (de São Paulo, cujo Diretório Acadêmico, o XI de agosto, ele presidiu), foi homem enérgico e de princípios rígidos. Os filhos eram por ele orientados e obedeciam sempre às ordens do pai. Caiadinho conta que depois do pleito eleitoral de 1950, quando seu irmão Emival pela primeira vez se elegeu para a Assembleia Legislativa, chegou todo orgulhoso à casa do pai, pensando, talvez, que pudesse merecer tratamento diferenciado. Foi quando ouviu: “Caiadinho, pega aí o material de consertar cerca e vai com o Emival revisar a cerca, que a boiada tá chegando”. Enquanto cumpriam aquela tarefa, um cavaleiro que ia passando foi chamado por Emival: “Ô companheiro, você tem uma traia de pitar aí”.

– Tenho.

– Então empresta aqui para o deputado”.

O diálogo seguinte do cavaleiro, depois de atender Emival, foi com Caiadinho:

– Ele é louco? – diante da informação de que realmente Emival havia sido eleito, o homem demonstrou admiração:

– Então é deputado mesmo? Que coisa, hein?

 

Tags

Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia

últimas
notícias