Opinião

Com dor e sem dor, ou como Dalton de Dodô

Diário da Manhã

Publicado em 24 de dezembro de 2016 às 02:14 | Atualizado há 8 anos

Sem dentistas formados, o interior valia-se mesmo era dos dentistas práticos, que usavam mais o boticão do que as brocas de obturar cáries, pois o povo deixava para ir ao dentista só quando restavam apenas tocos de dentes, que contavam a história de muitas dores.  Quando a dor apertava, em vez de correr ao dentista para, pelo menos, colocar ácido fênico na cava dolorida, o povo preferia fumar uma mistura de entrecasca de cedro com pinhão bravo para, adormecendo o dente, paliar a dor. Outras vezes, fazia um sinapismo, machucando alho e amarrando-o na ponta do dente mindinho do lado do dente doído, provocando uma pulsação muito grande no dedinho, “desviando” o pulsar do dente para o local do sinapismo. A Ciência deve ter uma explicação para esse remédio que não poucas vezes me aliviou dores de dente.

Na minha cidade, o dentista era tio Pery, que aprendera a profissão que lhe tornou o segundo meio de vida. Seu consultório resumia-se numa cadeira forrada de veludo azul-marinho, os ferrinhos e o temível obturador, que todos chamavam de motor, que de motor mesmo não tinha nada, pois era movido a pedal, como esses de máquina de costura, para girar as dolorosas e antipáticas brocas que pareciam roer não só o dente, mas também a alma do cliente.

Raros clientes usavam fazer tratamento de dentes, pois a preferência era a extração, substituindo toda a arcada por uma vistosa dentadura, obrigando o paciente a passar por doloroso regime de sopa e líquidos durante vários dias, pois não conseguia mastigar até que a dentadura fizesse um calo nas gengivas e no céu da boca.  Isto, depois de tio Pery experimentar tirar diferenças raspando a dentadura com o canivete “Corneta” que ele tinha e repetir dezenas de vezes esse rudimentar ritual de adaptação, até que a encomenda ficava pronta, e o freguês, apto a mastigar.

No seu consultório, que só atendia até as oito ou nove da manhã, no mais tardar (que seu sustento garantido mesmo era o balcão da loja de que era um dos sócios), milhares de bocas se abriram e montes de dentes furados passaram pelo seu boticão. E fatos curiosos decerto ali se deram. Era comum chegar gente do mato querendo extrair todos os dentes, embora perfeitos, para substituí-los por uma dentadura completa, porque o povo mais recursoso usava dentadura. E diálogos como este eram comuns:

– Seu dente está imprestável! O jeito é extrair.

– Não, “seu” Pery, esse miserável tá me atazanando demais e nem durmo direito.  Eu queria era outra coisa.

– O quê? – espantava-se tio Pery, completando: – O remédio é extrair o dente.

E o cliente, dando uma de entendido, de corajudo, arrematava a conversa:

– Em vez de “distrair”, eu queria mesmo era arrancar o diabo desse dente!

Afixado à porta de seu consultório, um aviso chamava a atenção:

“Com Dor, Três Cruzeiros. Sem Dor, Cinco Cruzeiros”.

Muito tempo se passou, até que consegui atinar com o significado daquele aviso, e me explicaram: a extração, “com dor” significava “sem anestesia”, e “sem dor”, “com anestesia”.  Era justificável: os tubinhos de anestesia vinham de muito longe e nem sei como chegavam, pois o correio era em lombo de burro; avião, só se conhecia quando coincidia uma rota passar por cima do lugar, e caminhão só ia lá uma vez na vida e outra na morte, pois as estradas de carro-de-boi só deixavam passar carro com muito sacrifício para abastecer o incipiente comércio e voltar carregado de couro de boi, pena de ema, pele de veado e caititu e saco de arroz.  A pobreza do povo tinha a alternativa do “com dor”, que só os mais providos podiam dar-se ao luxo de aliviosa anestesia.

E a invenção do “com dor” e “sem dor” veio inspirar outras atividades: um dia, vi escrito numa caixa de engraxar: “Com dor, duzentos réis. Sem dor, quinhentos reis”, e fiquei sem saber de que modo o engraxate poderia exercer sua profissão com dor e sem dor.  Quando eu soube que a caixa era de Dalton, filho de dona Dodô, o mais encapetado moleque do Duro, pensei logo que boa coisa não era.

E passei a reparar suas engraxadas.  Numa tarde, ele engraxava as botinas de um mascate libanês:

– Com dor ou sem dor? – indagou Dalton, dizendo que o sapato ficaria limpo do mesmo jeito mas com dor era duzentos réis. E o mascate, como era de se esperar, optou pelo “com dor”, de duzentos réis.

Logo fiquei sabendo. “Com dor” era, após cada escovada no sapato, ele dava uma “es¬covada” com as costas da escova na canela do freguês.

 

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

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