Opinião

Doroteu, exemplar cidadão, que de repente degringolou a vida

Redação DM

Publicado em 14 de dezembro de 2016 às 00:36 | Atualizado há 9 anos

Quem vive no sertão sempre ouve falar em feitiços, que atrapalham a vida dos outros, carreando doenças para os sadios e, muitas vezes, transformando pessoas tradicionalmente honestas em refinados vigaristas, arruinando-lhes os negócios e submetendo-as ao descrédito público de maneira inexplicável.

Contam-se casos de abastados fazendeiros que, de uma hora para outra, viram seus currais vazios e as lavouras esturricadas e chochas, apesar do tempo de chuva; de gente que, apesar de abstêmia por natureza, passou a invernar-se na cachaça, vendendo até o sustento para alimentar o vício, acabando muitos por morrerem em decorrência disso.

Na beira do córrego do Itaboca, no município de Conceição do Tocantins, ali no sertão, o velho Severiano já tinha perdido a conta dos feitiços que desmanchou, dos atrasos de vida que consertou, dos cachacismos que eliminou. Lá pelos anos vinte, a figura de Joaquim Paraguaio tornou-se legendária nesse mister de desembaraçar vidas atravancadas pelas porqueiras botadas pelos mandraqueiros do sertão.

Acreditem ou não, isto existe. Eu, por exemplo, conheço um caso concreto e atual que poderá ser confirmado a qualquer momento, ao qual só posso atribuir a alguma coisa botada, pois desde menino conheci meu amigo Doroteu Araújo, filho de família, criada na fazenda “Barril”, que sempre gozou de excelente conceito pela honestidade, pelo procedimento correto no honrar seus mais elementares compromissos.

Doroteu, muito inteligente e esforçado, dono de um talhe de letra de fazer inveja, tinha suas terrinhas herdadas do velho Joaquim Araújo e seu gadinho bom, to-cando vida mansa de gente remediada. Quando rapaz, trabalhou de caixeiro na “Loja Póvoa”, tendo sempre demonstrado correção e honestidade. Para quem conheceu meu pai, que era um símbolo do rigor e que jamais transigia quando se tratava de honestidade, o fato de viajar e deixar Doroteu gerindo a loja dias e dias era o maior atestado de seu procedimento exemplar.

Apesar de feio, cabeçudo, olhos arregalados e corpulento, sua correção e equilíbrio levaram-no a um bom casamento, com Miné, filha do velho Dãozinho, outra pessoa corretíssima e que sabia criar as filhas de forma a serem muito bem prendadas.

Anos felizes viveram Doroteu e Miné, cujo casamento lhes deu duas filhas, Maristela e Stella Maris.

A vida corria calma, remansosa para o casal. Mas num derrepente, cujo momento não se sabe precisar, a vida de Doroteu começou a dar pra trás, com os negócios goldando, as dívidas aumentando, os avisos do banco fazendo os avalistas irem saldar os débitos por eles garantidos, para não lhes sujar o nome ou até mesmo por uma consideração que sempre tiveram com todos os Araújo: Chico, Vicente, Gabriel, Geraldo e o próprio Doroteu.

Quando me contaram que Doroteu estava regredindo na vida, não acreditei, e numa das minhas estadas no sertão, tive o desprazer de ver Doroteu na cadeia da cidade, exposto ao escárnio público. Por fim, pegou a envolver-se em artimanhas próprias dos vigaristas, como inventar que havia ganho na loteria para poder lesar os amigos mais chegados, vender coisa que não possuía e outras coisas que, na época honesta de sua vida, sempre reprovou.

Certa vez, não se sabe o que lhe deu na cabeça, ele fez anunciar no serviço de alto-falante da cidade que havia ganho sozinho na loteria esportiva, convidando os credores a comparecerem à sua casa a fim de combinarem o recebimento dos débitos. Quando sua casa ficou cheia de gente, ele ainda andou tirando proveito dos credores, com “adiantamentos” por conta da loteria, que, afinal, era mentira. Houve casos em que ele vendeu gado para uns boiadeiros (sempre recebendo adiantado) e no momento de entregar o gado, caía em verdadeiro pranto: “Este boi, não, porque foi herança do meu pai!” “Esta vaquinha, não, pois é de minha filha Maristela!” e a muito custo conseguiram arrancar pelas metades o gado adquirido.

Outras vezes, dava uma de doido quando lhe iam cobrar qualquer débito:

– Estou doido!  Não respondo pelo que faço!  Eu mato um hoje, se vier me cobrar!

Por fim, de tanto passar vergonha, Miné o abandonou e foi morar com as filhas, pois Doroteu até pegou aquele jeitinho dos vigaristas, achando tudo fácil, tudo legal, dando na gente um abraço para filar uns trocados. Muita gente pagou dívidas de Doroteu para, de início, não sujar o nome do amigo avalizado, e, depois, para não sujar o seu próprio, pois viram que o Doroteu já estava pedindo a bênção pros cachorros.

Acabou morrendo matado lá pras terras do Pará, aonde fora aventurar a vida.

Quem deve estar se regozijando disso é aquele que, por inveja ou olho gordo, fez a desgraça de Doroteu num despacho qualquer.

 

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

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