Vergonha alheia
Diário da Manhã
Publicado em 9 de dezembro de 2016 às 00:50 | Atualizado há 8 anosAno passado, recebi uma mensagem pelo celular de um primo meu, Luiz Fernando. A foto da contracapa de Cavaleiro das Trevas – Edição Definitiva, autografada por caneta de tinta cinza, trazia a seguinte legenda desaforada: “Conhece?” Comecei a ter tremedeira. Eu não apenas conhecia, como ambicionava aquela assinatura. Aqueles garranchos estropiados escreveram alguns dos meus textos preferidos.
O autor daquele autógrafo era o americano Frank Miller. Eu ainda era menino quando recebi uma cópia publicada pela Editora Abril da graphic novel Cavaleiro das Trevas. Fiquei impressionado com aquele volume quase insano de texto – boa parte era noticiários inseridos na narrativa – sobre uma Gotham City distópica e decadente em um futuro próximo. A história sombria lembrava romances policiais noir, com um Batman envelhecido, bruto e cheio de falhas.
O estilo de texto de Frank Miller era enxuto e cadenciado. Suas frases eram secas, irônicas e visualmente fortes. Havia simplicidade na construção das orações, cuja expressão emprestava ao texto sujeira e peso emocional. Era um tipo de jornalismo em quadrinhos – embora ficcional. Se antes eu prestava atenção apenas aos personagens dos gibis, passei a buscar mais informações sobre os autores.
Perguntei ao Fernando como havia conseguido aquela preciosidade. Pelo jeito, não foi fácil. Durante a Comic Con de 2015, em São Paulo, ele chegou ao local às 6 horas da manhã para pegar o autógrafo de Miller durante a sessão das 18 horas. Mesmo assim, ainda era o décimo na ordem de chegada da fila. Por longas 12 horas, ficou aguardado para colher aquela única assinatura.
O Fernando sabia o quanto eu era apreciador do trabalho de Miller. Ele até tentou pegar um autógrafo para mim na ocasião, mas o autor de Sin City estava passando por problemas de saúde, o que restringiu a oportunidade. Naquele momento, decidi que iria na Comic Con de 2016. Vai que o cara estivesse por lá novamente?
Eu e minha família planejamos com cuidado ao longo do ano para participar da feira de cultura pop. Em outubro, foi divulgada a informação de Frank Miller estaria de novo na Comic Con. Batata. Era minha chance. Os organizadores anunciaram que a sessão de autógrafos seria realizada para um pequeno grupo de pessoas que pagassem R$ 200 reais pelo ingresso, cuja renda seria revertida para uma instituição beneficente.
No dia destinado à venda, fiquei martelando a tecla de atualização do computador o tempo todo. Assim foi do momento em que acordei até umas 20 horas, quando resolvi tomar um banho. Nos 10 minutos que fiquei afastado, foi aberta a venda. Sem surpresa: em três minutos todos os ingressos para a sessão de autógrafos estavam esgotados. Não haveria nenhuma outra oportunidade para adquirir o bilhete dourado.
Cabisbaixo, procurando no íntimo me conformar com a situação, decidi aceitar que não era minha vez. Embarquei com minha família na esperança de curtir as demais atrações. Ao chegar na feira, tive a confirmação de que não haveria novos ingressos. Mesmo assim, eu estava lá, firme e forte, com edições novinhas de Ronin e Elektra Assassina. Quem sabe, né?
Nenhuma alma caridosa quis me vender o ingresso para a sessão de autógrafos. O problema com nerds é esse. Ninguém abre mão de nada. Todo mundo tem sua coleção. Todos são fanáticos. Todos sabem o que é cabuloso. Vida de nerd é osso. Triste e abatido, fui para a fila onde estava minha mulher. Lamentei a situação. Ela decidiu dar um passeio. Eu fiquei por lá mesmo.
Pouco depois, ela chega a mim toda sorridente. Dizia que ainda havia esperança. Meu olhar vazio não concordava. Mas insistiu para que eu deixasse a fila e ficasse no entorno da cabine de autógrafos. Frank Miller deixaria o local e uma janela de oportunidade poderia surgir. Fiz o que ela disse, mas totalmente desprovido de esperança.
Eu e o Fernando nos juntamos a um bando de nerds que se formou próximo às escadas. O improvável aconteceu. Aquele senhor magro e miúdo, vestido com uma camiseta preta do Batman e chapéu escuro, vinha em direção ao nosso minúsculo grupo. Mal pude acreditar que eu, caminhando para meus 40 anos, estava bancando o tiete.
Praticamente soquei meu exemplar de Ronin nas mãos do mestre. Pedi uma caneta para a moça ao lado. Frank Miller pegou o encadernado e o autografou na primeira página mais clara. Eu havia ensaiado um monte de coisas para dizer naquele momento. Só consegui soltar um envergonhado “thank you, Mr. Miller”.
As mãos que agora seguravam o gibi pareciam as de um paciente avançado de Parkinson. Eu ajoelhei no chão e chorei copiosamente. O nosso grupinho nerd olhava para aquela cena com certo humor e condescendência. Foi o momento mais vergonha alheia que já passei, naquele chão de carpete, diante de dezenas de pessoas, abraçado com meu exemplar agora ensebado de Ronin.
(Victor Hugo Lopes, jornalista)