Opinião

O furto do Menino-Deus, quando vi operar-se um milagre

Diário da Manhã

Publicado em 6 de dezembro de 2016 às 01:20 | Atualizado há 8 anos

Eu era menino, ainda fedendo a mijo, mas me recordo muito bem, quando fez uma seca medonha lá no Duro. Dava pena ver o chão esturricado e as plantações crestadas pelo sol, o arroz, o milho e outros cereais, que, mal haviam brotado, já apre-sentavam um amarelado em suas tênues palhas. Apenas o feijão resistia, por ser mais tolerante ao sol.

Se Deus não tivesse pena, a lavoura iria perder-se toda. Por vários dias o povo fazia penitência, molhando a cruz-das-almas e rezando ajoelhado no cascalho, à canícula, mas a seca persistia, silenciosa e terrível, em pleno mês de novembro, mês de chuva, definhando o arroz, o milho, a cana e, enfim, toda a lavoura.

O pessoal de Nova Vida, reunido na casa de Honorão, preparava-se para peregrinar até os limites da fazenda, onde se penitenciaria ante a cruz-das-almas chantada no cascalho fino e agudo. Todo santo dia, sob o sol quente, a ponto de cozinhar o juízo, reunia-se todo mundo dos arredores de Nova Vida e lavradores de muitos lugares mais distantes, que viam definharem as plantações chochando os cachos justamente na época da parição do arroz e do embonecamento do milho.

À noite, Honorão, baqueado, estudava a saída para situação tão aflitiva. Na conversa com os presentes, seu sobrinho Lolô se lembrou de que numa cidadezinha da Bahia o povo, diante da seca que assolava a lavoura e devastava o sertão, mandou um emissário furtar o Menino-Deus dos braços de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, sob a promessa de só devolvê-lo após a chuva. E choveu.

Os olhos de Honorão clarearam e piscaram miúdo, mas não achava isto certo e, refletindo no caso, na mesma hora perderam o brilho; e parlamentaram muito tempo. Lolô, seu sobrinho, argumentava:

– Pode ser, meu tio, que noutro lugar estejam querendo sol por causa de enchentes e fica difícil o santo lembrar-se de tanta coisa. Pode até trocar os pedidos, mandando sol pra quem quer chuva e chuva pra quem quer sol. Se a gente pegar o Menino Jesus, ele sente falta e se lembra do nosso pedido.

– Ë… mas mesmo assim não está direito, Lolô!… – Honorão achava viável, mas temia pela conseqüência, pois do oiutro lado estava um poderoso santo.

Mesmo que o velho concordasse, ficava muito difícil o padre permitir que aquele povaréu entrasse na igreja para furtar o santo. Até citou que o padre Magalhães proibira folias de Reis e do Divino de entrarem na cidade, tendo um dia impedido as folias de Belé do Poção e dos Quirino do Abreu de entrarem na igreja. E foram dormir, sonhando com chuva.

De noitão, o cavalo de Lolô tiniu os cascos nos morros da Santa Maria em direção à rua, onde não se via vivalmansd ruas. Chegando à igreja, com a porta só encosta-da, que porta de igreja nunca se fecha, para não deixar de acolher peregrino algum, aproxima-se do altar. “Me perdoa, meu São José, e tenha piedade de nós! Mande-nos chuva, que amanhã mesmo faremos uma procissão pra lhe devolver seu santo Filho!”.

Carinhosa e respeitosamente, pegou a imagem, embrulhando-a numa pequena toalha branca e saiu. No altar, São José fitava o teto com seus olhos parados de estátua, num olhar triste como o de todo santo, chega Lolô deu vontade de voltar e devolver-lhe o Filho. Mas lembrou-se da seca. E pinicou o cavalo de volta, chegando à Nova Vida ao romper do dia. Encostou-se ali mesmo no chiqueiro dos bezerros e esperou a barra do dia anunciar a manhã.

Dia clareando, vinha Honorão com o filho Honorinho rumo ao curral, para desleitar as curraleiras, quando viram Lolô  encostado à porteira do chiqueiro, cochilando, com as mãos sobre o peito segurando com muita ganância qualquer coisa embrulhada na toalha branca.

– Lolô! Acorda, Lolô! Que é que você tem?

Abrindo os olhos vermelhos, passou na testa a mão calosa e, ainda refazendo-se do susto, falou:

– Meu tio, São José há de me perdoar. Furtei o Menino-Deus esta madrugada, mas tenho fé em que teremos chuva logo!

Honorão deu um passo para trás, terrificado, ante a hipótese de o santo castigar todo mundo:

– Meu filho, você não podia nunca ter feito uma malineza dessas! Você obrou muito mal!

O negócio era levar de volta a imagem do Menino-Deus e sujeitar-se, ainda, a levar uns pitos do vigário, que de folia arriba e abaixo, não acreditava nas manifestações religiosas do povo sertanejo. Pegaram a imagem, puseram-na sobre um caixote coberto com toalhas de rendas e ficaram rezando e entoando cânticos entremeando os mistérios do terço.

Ao meio-dia, já estava ali considerável multidão dos arredores, a quem Honorão mandara um positivo pra convidar para a procissão de devolução da pequenina imagem.

E saíram de Nova Vida em direção ao comércio. Eram duas léguas de morros e pedregulhos. Todos descalços, para com o sacrifício aplacar a possível ira sagrada. Pela estrada ia-se juntando mais gente. No Abreu, a família Quirino toda; no Buritizinho, uns chegantes; na Água Boa, mais gente. E a procissão arrastou-se vagarosamente, seguindo Honorão, que conduzia a santa imagem envolvida num pano branco perfumado.

O sol parecia mais quente do que nunca, descendo aos poucos como uma bola de fogo no céu azul sem sombra de nuvens. Nem pássaros havia cruzando as chapadas.

Na entrada da cidade, ouviam-se os hinos de louvor a São José Operário cantados por mais de uma centena de pessoas que, sob o sol causticante, peregrinavam trazendo o Menino-Deus de volta aos braços de São José.

O povo da rua, que nem havia notado a falta da imagem, ficou boquiaberto quando aquela multidão adentrou a igreja rezando. O padre, àquela hora da tarde, tirava sua pestana.

Honorão aproximou-se de São José, beijou-lhe os pés contrito, e respeitosamente colocou-lhe nos braços vazios o sorridente menino de olhos de conta.

Naquele momento, Honorão pareceu ter visto o santo sorrir no seu mutismo de estátua. “Eis o vosso sagrado Filho, meu Santo! Perdoai esta gente xucra, se é que a gente merece tanta bondade!”

Rezaram mais algum tempo e saíram cabisbaixos. Mas resignados. Ao saírem da igreja, contemplaram o céu escampo, azul e sem nuvens. A face negra e larga de Honorão, com pingos de suor marejando das entradas da testa, espelhava confiança, fé.

Ao começarem a subir os morros da Santa Maria, a chuva caiu. E acabaram de chegar a Nova Vida debaixo do maior aguaceiro já visto, que por vários dias passou a cair em toda a região.

E daquele dia em vante, a lavoura nunca mais sofreu por falta de chuva.

 

(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, membro da Associação Goiana de Imprensa (AGI), escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])

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