40 Anos de “alucinação”
Redação DM
Publicado em 22 de novembro de 2016 às 01:03 | Atualizado há 9 anosParte 1
Uma voz fanhosa e grave cantarolando country, balada, baião e blues fez surgir uma obra-prima da música popular: o disco Alucinação. Com teor reflexivo e filosófico condensado em versos como “Sons, palavras são navalhas”, o disco, que apresenta aspereza e rudeza numa linguagem seca e cortante, comemora 40 anos e é considerado um clássico marcante na carreira de um dos maiores letristas e cancioneiros brasileiros.
Publicado em 1976 pela Polygram (atual Universal Music), Alucinação, de Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes (70 anos), mais conhecido como Belchior, marcou e ainda marca o imaginário de gerações de alucinados por sua obra. Sua capa, desenhada pelo próprio cantor, anuncia a serenidade, o sofrimento e a ironia que marcam profundamente as músicas. Premiado em inúmeros festivais da Música Popular Brasileira, o disco é, antes de tudo, uma das maiores produções poéticas de Belchior. Do ponto de vista criativo e poético, o álbum consolidou o triunfo na carreira artística do poeta-compositor e o coroou com a existência e a concretização do desejo de um projeto ético e, ao mesmo tempo, estético. Como diz a pesquisadora Josely Teixeira Carlos (em dissertação de mestrado, defendida em 2007, pela Universidade Federal do Ceará), “o segundo elepê de Belchior supera todas as expectativas de venda em São Paulo, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Nopen que informou, na época, passar de cento e trinta mil o número de cópias vendidas. A Pop Difusora, por meio de outra pesquisa, também revelou que em seis semanas consecutivas a música Apenas um rapaz latino americano ocupou o primeiro lugar em São Paulo e no Grande Rio, e a composição Como nossos pais’ o quarto lugar nas paradas de sucesso”.
Nascido em Sobral, no Ceará, em 26 de outubro de 1946, Belchior tem sua trajetória de vida ligada à arte. Depois de desistir do seminário e, logo em seguida, ingressar na faculdade de Medicina, em Fortaleza, o jovem Belchior começa a ganhar notório destaque nas apresentações de música no estado do Ceará a partir de 1965. Em 1970, poucos anos depois da eclosão do movimento tropicalista, ele vai para o Rio de Janeiro abandonando definitivamente os bancos estudantis de medicina.
Eis aqui um importante elemento de destaque: trata-se dos anos 70 e o disco Alucinação é marcado fundamentalmente pelas dificuldades da migração do “Norte” para a “cidade grande”, o que rememora a viagem em direção ao sudeste, bem como as experiências vividas na chegada ao Rio de Janeiro e São Paulo. Assim, no decorrer da constituição de sua identidade estética e poética, o projeto de Belchior tem a finalidade de indicar seu posicionamento ético de rapaz “latino” e “americano” presente nos grandes centros do país, assim como denunciar os vários problemas nesse percurso de quem veio como retirante.
Caracterizado por fazer críticas ao modelo de progresso do ocidente, das territorialidades das grandes cidades e, consequentemente, revelar sua frustração diante desses aspectos, Belchior confirma indícios desse projeto estético ao dizer que as suas canções “são uma espécie de biografia sim, lírica, dramática, às vezes trágica de um personagem da minha geração do qual eu me identifico, uma geração que quis mudar o Brasil, que quis mudar o mundo, que se desesperou diante das impossibilidades, que combateu, que perdeu, que se decepcionou, que venceu, que brilhou e que criou um conjunto de ideias, sensações e emoções que são com certeza um patrimônio popular, vamos dizer assim, das ideias mais interessantes que ainda hoje se discute no Brasil” (Entrevista concedida à jornalista Cláudia Nocchi, em 20 de junho 1996, no programa Perguntar não ofende? da TVCOM).
Assim, podemos dizer categoricamente que Alucinação causa grande polêmica pela forma e pelo conteúdo, pois discute de maneira peculiar os sentimentos, as perplexidades, as contradições de toda uma geração brasileira e mundial de jovens que projetou no futuro uma variedade de aspirações, mas, ao analisar o presente sob o viés do passado, percebeu as dificuldades do viver.
O disco se inicia com a canção Apenas um rapaz latino-americano. Conhecida como a música mais popularizada de Belchior, ele mesmo diz que teve o objetivo de apresentar uma persona poética habitante da esquina do mundo, “uma pessoa do terceiro mundo, uma pessoa na expectativa, uma pessoa dependente economicamente do restante do mundo, mas com uma capacidade enorme de desdobramento vital, de resistência, de rebeldia do espírito, de novidade, de transformação, de poder novo” (Belchior, em entrevista a Guilherme em 1983). Dessa forma, em tempos sombrios do crescimento de uma visão conservadora prejudicial ao aspecto estético contemplativo do dia a dia, a canção pode dizer muito sobre nossa época, visto que nos faz ter o entendimento de que “a vida realmente é diferente, quer dizer, ao vivo é muito pior”.
Na música seguinte, Velha roupa colorida, encontramos um arsenal de críticas de Belchior à juventude dos anos 60. Os jovens, outrora contestadores, perdem seu éthos de criticidade conforme a visão de Belchior. Nessa mesma letra, uma referência ao passado é elementar para compreender como o velho é sinônimo de superação, ou seja, como algo que tornara-se obsoleto e que é necessário mudar (em suas próprias palavras, rejuvenescer). Utilizando da intertextualidade, técnica de se referir a outras obras, o cantor faz alusão às letras de She’s leaving home (da banda The Beatles, originalmente publicada no disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band de 1967) e Like a Rolling Stone (do agora Nobel de Literatura Bob Dylan, gravada no disco Highway 61 Revisited, de 1965), além de reverenciar Edgar Allan Poe, fazendo alusão ao poema O corvo (The Raven), publicado pela primeira vez em 1845 no jornal New York Evening Mirror. Ao fazer uma espécie de mosaico com referências e alusões (algo revelador acerca da erudição do músico), Belchior compreende que o passado é uma roupa que não nos serve mais:
“No presente a mente, o corpo é diferente/
E o passado é uma roupa que não nos serve mais/
No presente a mente, o corpo é diferente/
E o passado é uma roupa que não nos serve mais.”
Na faixa 3, as ásperas e renitentes palavras de Belchior tornam Como nossos pais uma crítica geracional. Essa noção do passado só pode ter sentido através da conexão entre a experiência humana do passado e seu agir humano no presente, que implica numa nova leitura do passado, agora presentificado. No entanto, a visão negativa do passado não está presa necessariamente no próprio passado. Segundo o cantor nordestino, no tempo presente, o passado se manifesta. Ao usar novamente o recurso intertextual discursivo para referenciar as canções As aparências enganam, de Tunai e Sérgio Natureza, e Sinal fechado, de Paulinho da Viola, Belchior deixa claro que a vivência torna-se o elemento definidor de sua concepção de passado, já que, para ele, o tempo passado que estava repleto de coisas novas já não tem mais sentido no presente. Por assim dizer, a experiência do tempo, na maneira em que a interpretação desse passado está presentificado nas ações atuais, ganha determinada significação para a orientação da vida prática tendo um sentido histórico: a necessidade da superação dos elementos do passado que não servem ao presente. Nesse sentido, a experiência do passado e a interpretação deste produz um sentido a partir dessa nova interpretação. Vejamos:
“Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo
Viver é melhor que sonhar/
E eu sei que o amor é uma coisa boa/
Mas também sei que qualquer canto/
É menor do que a vida de qualquer pessoa…”
Sujeito de sorte é um épico baião-rock caracterizado pela mistura de ritmos musicais nacionais e internacionais. Logo em seguida há uma faixa que utopicamente indica o presente como um mundo do amanhã no qual não haveria ninguém para ser reverenciado, assim Belchior pede um mundo Como o diabo gosta. A canção-protesto marcada pela rebeldia de um jovem que quer o radicalmente novo, um sentimento sublime e grandioso, incontrolável em busca do desejo de superação apresenta-se assim: “O que transforma o velho no novo / Bendito fruto do povo será / E a única forma que pode ser norma / É nenhuma regra ter / É nunca fazer nada que o Mestre mandar / Sempre desobedecer / Nunca reverenciar.”
Há algo mais jovem que a desobediência?
Esse texto continua na tentativa de reconstrução dos sentimentos mais profundos despertos por esse disco.
(João Gabriel da Fonseca, professor da rede particular de ensino e cocriador do Crimideia – vídeoaulas (YouTube). Graduado em História e Filosofia, especialista em História Cultural (UFG) e mestrando em História das Identidades e Fronteiras Interculturais (UFG). Autor dos livros: “A destruição do Leviatã: critica anarquista ao Estado” (2014); “Escritos sobre a imprensa operária da Primeira República” (2013);“Educação e anarquismo: uma perspectiva libertária (2012)”. E-mail: [email protected])