A pensão de Gustavinho, na velha São José do Duro
Redação DM
Publicado em 12 de novembro de 2016 às 01:45 | Atualizado há 9 anosDe vez em quando, um leitor me cutuca, trazendo às vezes de uma fundura medonha da memória, um causo, um personagem, um lugar que marcou nossa meninice. E isto me ajuda a escarafunchar as coisas e levantar muito defunto, que, em vez de me assombrar, me traz é prazer.
Diinhas atrás, meu primo Amilton Póvoa Leal, que é casado com minha sobrinha Vilma (fico sem saber se o trato de primo ou de sobrinho afim), comentando um de meus escritos sobre o Duro, cobrou-me um texto sobre a antiga pensão de Gustavinho e Lindaura Macedo. E se minha memória não me trair, ela ainda passa nítida na tela de minhas lembranças. E para cutucar reminiscências, diariamente meu amigo Tezinho, sobrinho de Lindaura, lê meus escritos aqui no “Diário da Manhã”.
Na nossa época de meninice, as pessoas geralmente se hospedavam na casa de parentes e conhecidos, pois não havia pensão, estalagem, e hotel era uma palavra que só se conhecia por ouvir dizer. O povo do sertão, quando vinha lá uma vez ou outra, ficava na casa dos patrões, quando tinha, ou aboletava numa das “rancharias” que comerciantes costumavam ter, fazendo um puxadinho nos fundos de seu comércio. Muito depois é que a pensão virou hotel, e apareceram o Hotel Fazenda (de uns gaúchos e que ficava em plena cidade, nada tendo de Fazenda), o Hotel Santana, Hotel Tocaia, Uirapuru e outros, e depois que descobriram o que era hotel, não se viu mais nenhuma pensão existiu mais; tudo era hotel.
Mas voltemos ao assunto, para não desguiar a conversa.
Lá pelos anos cinquenta e tantos, chegaram lá no Duro, de mala e cuia, vindo de Barreiras-BA, Gustavo Macedo com a mulher, Lindaura Seabra, e logo família também chegou: D. Alzira, irmã de Lindaura, que veio adornar a Rua de Baixo (hoje, rua Benedito Póvoa) com umas filhas muito bonitas – Dirinha, Osvaldina, Dedé – e os dois filhos, meu amigo Tezinho (bom caráter e excelente jogador de futebol) e Fane, e outros parentes, como o irmão Teco, que logo se enfronhou na sociedade.
Muito dados e espontâneos, os Seabra/Macedo logo fizeram amizade com os grandes da cidade, e, vendo que a cidadezinha começava a engatinhar, e sentiram que a vendinha fraca ali na esquina com a Rua do Mercado não dava retorno para vencer as despesas, e sendo Lindaura muito expedita e de bons modos, tiveram a ideia de dar uma modificada na casa, fazendo um quarto aqui, outro ali, e montaram a “Pensão Macedo”, que ficava vis-à-vis com a casa de minha tia Quininha, e não tardou a ganhar hóspedes aos montes, pois o comércio lá do Duro era feito exclusivamente com Barreiras, justamente de onde vieram Gustavinho e família, e os comerciantes barreirenses passaram a hospedar-se na pensão, sem aquele incômodo de ficar na casa dos outros, tirando os moradores das camas para agasalhar quem chegava para arranchar.
Ali ficavam os donos de caminhão, como Euclides e seu irmão Melquíades, o “seo” Augusto, também dono de um cheba, que vivia trafegando nos gerais entre a Bahia e Goiás, além do pessoal dos Braga, comerciantes fortes de Barreiras, com quem a “Loja Póvoa” comerciava, talqualmente o coronel Afonso Carvalho, Zeca Póvoa, Franklin Antunes e outros.
O fato de ser a única hospedaria da cidade não fazia com que os hóspedes do estabelecimento de Lindaura e Gustavinho fossem mal servidos: cedo, Lindaura e uma catervagenzinha de bem mandados serviçais caíam na rua atrás de alguém que tivesse horta para fornecer verduras e legumes, que às vezes mandavam buscar no Mato Seco, na mão de Teodoro e Berto, e de madrugada já ia gente no curral da matança encomendar uma carnezinha para cozinhar pros hóspedes, pois só se matava uma rês duas vezes por semana, que já chegavam com os cortes de carne com osso e “muciça” com donos consinados no açougue velho e imundo encostado entre a casa de Quinca Valente e de Valtinho, utilizados por Calça Boa, Tintino, Zé Té e outros açougueiros; e o café da manhã era típico dali: de madrugada já o negro Alberto, cria da casa, que de branco só tinha os dentes e o caroço do zói, tirava fubá de milho pra fazer cuscuz ou mandava vir tapioca ou massa de mandioca pro beiju, besuntado com nata de leite, quando faltava a manteiga, que essa tal de margarina ninguém conhecia, como também não conhecia o fubá mimoso que hoje se vende em qualquer pegue-pague.
Como não tinham filhos, Gustavinho e Lindaura criavam como filha uma sobrinha muito bonita, cujo nome omito, para não causar constrangimento.
Mas vá escutando. Cidade sem mulheres de vida fácil, a não ser umas raparigas já consinadas de pessoas do lugar, como Delzuíta de meu padrinho João Barbosa, a homaiada pensionada na casa de Gustavinho, comia com as vistas qualquer ser feminino que passava por ali, não escapando nem a preta Eugênia, uma atoleimada que Aníbal e Guiomar criavam.
A mocinha de Lindaura, de coxas torneadas, feição de boneca e andar provocante, despertava pensamentos libidinosos dos hóspedes da pensão. E um dia de manhãzinha armou-se um tendepá na casa de Caetana de Genésio, parentes de Lindaura: um dos mais conceituados hóspedes fora encontrado morto debaixo do pé de juá do quintal do vizinho Bolacha, e Herculaninho Araújo, o farmacêutico-médico prático da rua, diagnosticou que ele tinha sido vítima de uma congestão que lhe fora fatal. Lindaura informara que seu hóspede comera na janta da véspera, antes do fatal encontro, um suculento escalfado na pensão de dona Zilpa, uma comida considerada muito pesada, no dizer de Herculaninho.
Pergunta daqui, investiga dali, a mocinha começou a ficar incomodada e acabou confessando que tinha tido relações sexuais com o tal hóspede, que nem pôde se levantar, morrendo ali mesmo; e o caso passeou de boca em boca até nas pontas de rua, escrito um rastilho de pólvora, levando Lindaura a exportar a moça proutra cidade, e ela-Lindaura, muito conceituada na cidade, caiu as carnes, ficou macambúzia, vindo para Goiânia fazer tratamento.
Aqui passou uns tempos, deixando no Duro a notícia de que viera tratar-se. Como o médico não a conhecia, ela “despejou o saco”: contou toda a história, mas queixava-se de umas dores no abdômen. O médico apalpou-a, coisou o estetoscópio na caixa dos peitos e entre as apás, cotejou os exames e falou:
– A senhora vai ficar boa. É só uma inflamação e, no mais, é o trauma.
Chegando curada lá no Duro, e já esquecido o episódio que a tangera de lá pra caçar tratamento, tia Stella, comadre dela e mãe do nosso poeta-filósofo José Cândido, foi visitá-la e, muito cautelosa e conveniente, não tocou no assunto da moça, mas não podia deixar de perguntar sobre o resultado do tratamento. E Lindaura, toda falante, disse o que lhe diagnosticara o doutor:
– Graças a Deus, comadre, não era nada grave. O médico disse que minha doença era apenas uma inflamação no trauma.
Ainda me lembro da pensão de Gustavinho, vis-à-vis com a casa de tia Quininha, e que, demolida por uma chuva de vento anos atrás, marcou história e deixou saudades.
(Liberato Póvoa, desembargador aposentado do TJ-TO, membro-fundador da Academia Tocantinense de Letras e da Academia Dianopolina de Letras, escritor, jurista, historiador e advogado, [email protected])