Deus ou nada
Diário da Manhã
Publicado em 11 de novembro de 2016 às 02:01 | Atualizado há 8 anosA radicalidade do título desse artigo é testemunhada pela vida do autor do livro que tem o mesmo título, Robert Sarah, Cardeal da Igreja Católica. Não se trata de uma radicalidade num sentido pejorativo do termo, mas de uma radicalidade que desce profundamente às raízes da fé cristã.
O importante livro lançado pela editora Fons Sapientiae, escrito quase em primeira pessoa, como texto-entrevista, nos apresenta importantes questões para a reflexão e a conversão cotidiana que deve nortear a vida dos cristãos.
Robert Sarah, oriundo da África,mais especificamente da Guiné e nascido em 1945, viveu todos os dramas do mundo contemporâneo, sofrendo na pele a pobreza do seu continente, a perseguição das ditaduras comunistas, a distância da família e as necessidades e desafios missionários que a igreja lhe apresentou. Com um testemunho de fé invejável e uma inteligência abençoada, o padre Robert Sarah foi nomeado bispo aos 33 anos pelo Papa Paulo VI.
O livro Deus ou Nada expõe de forma direta o posicionamento , sem ambiguidades, do Cardeal Sarah , que defende a formação do clero fundada na oração e nos valores do Evangelho, que denuncia os medos da Igreja em assumir seu papel na sociedade, alertando que sua missão caritativa e apostólica não a torna semelhante a uma ONG, movida por ideologias, mas é comparável à lua, que, sem luz própria, reflete sempre a luz do sol, a luz de Deus. (pág.132). O Cardeal Sarah enfrenta ainda a delicada questão da liturgia, chamando a atenção para o silêncio e adoração que devem ser preservados pelo celebrante e pelo povo participante. Mais adiante, retomando o tema da Misericórdia, em consonância com os apelos do Papa Francisco, O Cardeal alerta que se a Igreja a todos acolhe, a todos também chama à conversão e não se pode ofuscar pecados graves da humanidade em nome de uma falsa conciliação. Nesse sentido alerta: “De fato, o verdadeiro escândalo não é a existência de pecadores, porque precisamente a misericórdia e o perdão existem sempre para eles, mas a confusão entre o bem e o mal, operada pelos pastores católicos. Se homens consagrados a Deus não são mais capazes de compreender a radicalidade da mensagem do Evangelho, procurando anestesiá-la, nós estaremos num falso caminho. Porque eis aí a verdadeira falta de misericórdia.” (pág. 360)
Se de um lado o livro denuncia as atrocidades da pedofilia na Igreja, sem minimizar em nada o aspecto malévolo e satânico de tais situações e dos envolvidos, de outro lado o texto é ainda um excelente testemunho sobre a atuação da Igreja e do entrevistado frente às ações de auxílio prestadas pela Santa Sé aos mais pobres em diversas partes do mundo, mesmo que para tanto, tenha a Igreja enfrentado governos e ditaduras. Porém um dos maiores dramas denunciados pelo brilhante Cardeal é a “liquidação de Deus no horizonte das culturas ocidentais”, assim a fé é banalizada, a família pulverizada, e o ser humano não mais se reconhece nem reconhece seu criador. Sarah é enfático ao condenar a ideologia de gênero vendida e financiada por organismos internacionais e não deixa dúvidas de que a sua destruição no ocidente é comparável ao ataque externo que o ocidente sofre por parte dos grupos extremistas do mundo muçulmano (nesse particular destaca o autor os milhares de mártires cristãos do século XX e XXI que se somam aos mártires que com seu sangue derramado semearam a fé e a Igreja ao longo dos séculos).
O ateísmo crescente e o relativismo moral são denunciados, como o fez Bento XVI, como modelos a serem combatidos com autênticos testemunhos de fé em Jesus. O Cardeal Sarah toma o exemplo da Igreja Ortodoxa, que mesmo depois de uma tempestade comunista que quase a exterminou da Rússia, está ela viva, crescendo e a fé cristã está no centro dos debates daquele país, mostrando, sem qualquer ambiguidade, uma igreja com posições firmes sobre os temas que para interesses de muitos, podem se tornar polêmicos (pág. 219).
A leitura do livro do Cardeal Sarah incomoda, pois o autor não admite o morno, o que quer conciliar com Deus e com o diabo (aliás, este, nas suas mais diversas formas de atuação e formação do mal, é figura atacada diretamente pelo autor). No rol das atrocidades demoníacas as quais o mundo se associa, em nome de ideologias e “direitos humanos”, ressaem a obra abortiva dos grupos feministas e defendidos pela ONU, as guerras financiadas e a miséria dos países mais pobres, como o caso do Haiti, que recebeu atenção especial do Cardeal no comando dos organismos de ações caritativas da Santa Sé. (pág. 101).
O clero e os leigos, católicos de todo o mundo, devem ser voz forte e fortalecida pela oração e pela eucaristia para fazer frente a tudo isso, e não se deixar levar por modismos e atrativos pessoais, alerta o Cardeal, ao relembrar o papel da Igreja a partir dos documentos conciliares e da enorme produção doutrinária e teológica dos últimos papas, em especial João Paulo II e Bento XVI.
Deus ou Nada, é quase um compêndio de teologia em uma linguagem acessível, na qual o autor, colocando no mesmo patamar leitores leigos e grandes teólogos, os fazem refletir sobre Cristologia, Trindade, espiritualidade, graça, eclesiologia, ecumenismo, mariologia, missiologia, liturgia e política, sem perder a profundidade que esses temas merecem.
A leitura do texto do Cardeal Robert Sarah deveria sem sombra de dúvida acompanhar passo a passo a formação dos nossos sacerdotes e dos nossos catequistas, posto que assim poderia colaborar com a formação de uma consciência cristã da fé dentro de uma perspectiva que ao mesmo tempo enxerga o sujeito na sua relação com Deus, e também o mundo frente aos desafios da fé. Ler Deus ou Nada é ter a oportunidade de testemunhar a voz de um profeta do século XXI, que denuncia as injustiças e o pecado e anuncia a palavra de Deus voltadas para a esperança da ressurreição.
(Pedro Sergio dos Santos, professor da Universidade Federal de Goiás. Doutor em Direito pela UFPE)