Cotidiano

Diversão e terapia para crianças

Redação DM

Publicado em 12 de agosto de 2018 às 00:27 | Atualizado há 5 meses

O co-fundador do grupo de terapia Dungeons & Dra­gons (D&D) de um con­sultório sobre rodas, Adam Davis, acredita que crianças com proble­mas sociais não são questionadas corretamente. Numa lúgubre sala do conselheiro da escola pode ser difícil se abrir com perguntas do tipo “Por que você não está fazen­do sua lição de casa?”, ou “Você já tentou aderir a clubes?”. Para Davis, inquirições com resulta­dos mais frutíferos devem come­çar com questões como: “Quem tem o machado? É de duas mãos? Que tipo de mago você quer ser?”

Davis, que cuida de um consul­tório móvel, ao invés de uma sala fe­chada num grande prédio em Seatt­le, no estado de Washigton, EUA, visa atender e ir até crianças que apresentam um comportamento mais fechado e que se isolam dos co­legas. Ele e o co-fundador do Dun­geons & Dragons Therapy, Adam Johns, projetam jogos de D&D que deixam de apenas um hack-and-s­lash dungeon-crawls (rastrear, ata­car e matar dragões) e mais como uma terapia com dragões. O mun­do dos Reinos Esquecidos de D&D é uma farra para a psique das crian­ças, segundo o terapeuta.

Davis contou sobre Frank (nome fictício), um adolescente alto e magro que não falava nada além de murmurar. Na escola, ele tendia a se sentar abraçado aos joe­lhos, a fim de cobrir o rosto, para que ninguém pudesse realmente vê-lo. Ele odiava ser visto. Depois que seus pais e professores perce­beram que sua linguagem corporal parecia um pouco estranha das dos demais colegas, eles o inscreveram na oficina da Wheelhouse.

“O personagem que ele escolheu foi um anão bárbaro”, recordou Da­vis. “Ele era realmente alto, atrapa­lhado e desregrado. Era uma opor­tunidade realmente óbvia para esse garoto brincar com qualidades que não as dele”. Adam tinha Frank sen­tado como seu personagem, sepa­rando as pernas e batendo os coto­velos na mesa. Interpretando seu anão-bárbaro, e o garoto poderia experimentar novos modos de se relacionar com os outros.

Em junho, Davis e Johns, que o ajudou a levantar o consultório móvel, fizeram uma apresentação na convenção PAX East em Bos­ton. Eles brincam que todos os ou­tros grupos de terapia acreditavam que usar o D&D como uma for­ma de tratamento era a idéia de­les. Mas isso não é verdade. Exis­te mais ou menos uma meia dúzia de outros grupos em todos os es­tados que utilizam o potencial te­rapêutico dos RPGs de mesa. Os terapeutas têm usado por muito tempo o role-play para ajudar seus pacientes, convidando-os a inter­pretarem personagens em cená­rios que imitam sua realidade, e inimigos como os seus verdadei­ros problemas. Além de fazer com que observem de maneira diferen­te seus pais e seus amigos.

VEROSSIMILHANÇA

Mas tudo isso pode ser um tra­balho falho se não existir um bom “gancho” ou se distanciar demais da vida real. O mundo fictício pre­cisa ter uma grande verossimi­lhança e permitir que a mente dos pacientes, ainda que inconsciente­mente, possam interpretar e resol­ver seus problemas pessoais atra­vés dos seus personagens e sob suas perspectivas. D&D é inerente­mente cooperativo e escapista, ele incita jogadores a reimaginar for­ma de se interagir em grupo. Além disso, cada jogador tem sua própria especialidade, como se comunicar com dragões, ou rastrear e encon­trar pistas com mais facilidade, ser rápido e furtivo, ou ser um bravo e forte guerreiro. Cada paciente, cada jogador, terá seu momento para se sentir valioso num grupo.

Na pior das hipóteses, crianças isoladas socialmente podem que­rer bater em alguns goblins (espécie de pequenos, asquerosos e maldo­sos monstros, muito comuns no uni­verso de D&D) depois de um péssi­mo dia na escola. “Para alguém que nunca sai de casa, exceto para a esco­la, ter um colega dizendo: ‘Preciso de sua ajuda para abrir um cadeado’ faz uma grande diferença”, explica Johns.

Fora de Ephrata, no estado da Pensilvânia, EUA, Jack Berkenstock dirige o Bodhana Group, uma orga­nização sem fins lucrativos que usa o valor social e educacional ineren­te aos jogos de role-playing para a terapia. Ele é um clínico a nível de mestrado que, por 23 anos, aten­deu os jovens do centro da cidade. Anos mais tarde, por nove anos, ele prestou serviços de saúde mental a uma unidade de tratamento de todos os homens do sexo mascu­lino, incluindo delinquentes se­xuais. Lá, ele teve a brilhante idéia de começar a executar um jogo D & D. “Quantas vezes você pode real­mente assistir a Snow Dogs?”, ele ri, referindo-se a um péssimo filme de comédia sobre cães de trenó.

Imediatamente, segundo Ber­kenstock, os benefícios sociais eram claros. “Começamos a ver crianças que tinham problemas de suas famílias trazendo isso para o jogo”, disse Berkenstock. “É chamado de ‘sangrar’: o quan­to sua identidade pessoal afeta o personagem que você está jogan­do? E o quanto seu personagem te impacta como jogador?”.

O que torna a execução de um grupo de D&D terapêutico diferen­te de qualquer reunião desorgani­zada de D&D é a “intencionalida­de”. Berkenstock tem o cuidado de projetar jogos onde as ações dos jogadores têm conseqüências. Por exemplo, ele não protegeria um jo­gador super-impulsivo de um covil de dragões. Se seu personagem é gravemente ferido, essa é a reper­cussão natural. Quando seus joga­dores atacam uma aldeia orc, ele se certifica de mostrar como isso afe­ta as crianças orcs ou suas mães. “Acredito que você pode explorar as conseqüências num ambiente onde ninguém se machuca fisica­mente”, disse Berkenstock.

 

 



“Eu acredito que você pode explorar consequências num ambiente onde ninguém se machuca fisicamente”

Jack Berkenstock

 

“Eu os fiz sentar à mesa da mesma forma como seus personagens se sentariam”

Adam Jonhs

 

 

Resultados promissores

Adam Johns da Wheelhouse Workshop construiu uma história de D&D que fez Frank e seu grupo se infiltrar num jantar real para encon­trarinformaçõessobreumpolíticolo­cal. Para entrar, os convivas deveriam estar vestidos em trajes de gala. Então, eles entraram e disseram a quem os perguntasse que eram de um reino inventado. “Eu os fiz sentar à mesa da mesma forma como seus persona­gens se sentariam”, disse Johns. Para imitar a festa, Johns conseguiu tige­las de sopa para imitar a refeição no jogo. “[Frank] estendia a mão e pega­va o pão do garçom com pinças, ras­gava o pão de sua mão, sorvendo sua sopa de tinta de lula. Todos os outros pensavam que Frank era um nobre”, contou ele rindo.

De acordo com os pais, a flexibi­lidade é uma questão comum entre as crianças matriculadas no Whee­lhouse Workshop. Estrutura e regras podem ajudar as crianças com au­tismo a lidar com um mundo deso­rientador, mas também, torna a in­teração social bastante difícil. Uma das mães de um participante no wor­kshop Wheelhouse de Johns e Davis contou que seu filho tem dificuldade em desviar-se de suas próprias idéias daquilo que é certo. D&D, por vezes, força os jogadores a considerar as es­tratégias dos outros para evitar matar orcsouconfiarnahabilidadedecaris­ma de outros jogadores para negociar com os inimigos. “Ele me disse que realmente discordou, por vezes, com o que seus colegas aventureiros deci­diram, mas que, logo mais tarde, por vezes, ele voltou atrás e concordou queadecisãofoiboa”. Elaacrescentou que “este é um ganho surpreendente em termos de flexibilidade para ele.”

D&D não está prestes a se tornar o próximo teste da mancha de tin­ta ou “e como isso faz você se sen­tir?”, mas há uma forte continuidade entre vidas internas dos jogadores e fantasias escapistas. Aproveitar essas fantasias ao serviço da tera­pia não é um grande sal­to, em parte, porque não é inteiramen­te intuitivo. O D&D nunca foi, e nunca será, comercializada como uma ferramen­ta para terapeutas. É só um jogo. É também por isso que ele pode ser usado com crianças que precisam de ajuda.


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